Intolerável | crônica de Giovanna Ramundo

Giovanna Ramundo literatura e fechadura - Intolerável | crônica de Giovanna RamundoGiovanna Ramundo nasceu no Rio de Janeiro em 1999. Apaixonada pelo universo literário desde criança decidiu cursar Letras – Formação do Escritor na PUC-RJ, onde está tendo a oportunidade de expandir seus horizontes e aperfeiçoar sua escrita e estilo.
Lançou, em 2018, seu primeiro livro “Como nascem as estrelas: a história das crianças que não sabem crescer” e atualmente divulga seus trabalhos em seu blog  “ meus reflexos acrônimos”.
 
 
 
 

INTOLERÁVEL¹
Giovanna Ramundo

 

Neste momento não me importam suas crenças: no meu texto, existem diversas realidades. Que fique claro também que uma realidade não cabe em outra. Por isso, na nossa realidade (ou na realidade que percebo pelo menos, e que você terá que perceber também, já que esqueceu suas crenças para ler o meu texto) nos contentamos em existir.
Diariamente acordamos e nos trajamos de conformismo (existir é sempre mais fácil se seguirmos o conformismo) e passamos os dedos brincando, feito crianças, pelas formas que habitamos; as linhas que delimitam nossas fronteiras, imutáveis e intocáveis: santificadas.

Realidades não existem dentro de outras. Sim, já disse isso, mas como você acabou de abandonar suas crenças, preciso repetir para que passe a crer nas minhas.
Realidades são planas, não se encaixam, mas, às vezes, se sobrepõem. E quando se sobrepõem, acabamos (alguns de nós acabam) enxergando essas outras perspectivas, tão parecidas e ao mesmo tempo diferentes da nossa. E em uma outra realidade (ou em algumas outras – ou talvez em todas as outras), o viver existe. Quando nos deparamos com a vida, chegamos à conclusão de que o existir não basta. Deveria bastar, mas não basta. Seria bem mais fácil se bastasse; mas não basta.

E assim se inicia a vida: não com a primeira inspiração, mas com a última expiração.

(tente: respire um pouco agora)

A partir desse momento, passamos a perseguir a vida. E a vida não faz parte da nossa realidade. E isso é um problema… Existimos em busca da vida. Existir para viver.
Mas não conseguimos, é claro. Viver é intolerável em nossa realidade. E como alcançar algo que está fora de nossa própria realidade? Algo inalcançável…? Mas da mesma maneira seguimos… Então vem a descoberta: a busca pela vida também é intolerável (nessa nossa realidade). E mesmo nunca tendo vivido, morremos… Assassinados. Suicidados.

É por isso que Dom Quixote morre ao final do livro. E Emma Bovary. E Randy McMurphy. E Bartebly (mesmo que soe contraditório). E todos os bons personagens em “As Crônicas de Nárnia”. E Sydney Novak. E Alexander Supertramp. E o autor, quando para de escrever a história.

E eu. É claro, eu!

Não cabemos mais nessa realidade, somos intoleráveis.

E essa realidade também nos é intolerável; não cabe mais em nós.
O conceito é difícil de entender, sei disso, e, infelizmente, tenho pouco tempo para explicá-lo: estou me esvaindo.

(eu morro ao final do texto, sacou?)

Esta realidade me expulsa de seu útero. Este mundo me ejacula. Esta sociedade me arranca de seu seio baldo, sem saber que eu não fazia mais nada além de roer o bico de sua mama.

Acreditei, por muito tempo, que para viver era necessário existir. Mas fui estúpida. Continuo sendo. É impossível viver existindo. Não, impossível não: intolerável. Depois que se existiu, viver é insustentável. É óbvio que quem vive nunca existiu (as pessoas que vivem são pura imaginação, percebo agora). É óbvio. Ou deveria ser óbvio (é que óbvio também é intolerável).

Assim resisto ao existir, mesmo sabendo que nunca viverei. Sigo em busca do último dos suspiros, com esperança de que consiga enfim ter vida (ou seria a esperança também intolerável? Ah, nem sei. Estou desvanecendo, lembra?).

E nossa realidade, além de intolerante, também é irônica. Muito irônica. Nela, a ideia de viver existe, mesmo que o ato não. Isso sim deveria ser intolerável, e é extremamente irritante, se deseja saber minha opinião.

Chego ao ponto em que me pergunto se depois de eu morrer, seguirei sendo um dínamo. E se essa sociedade também. Acredito que sim: somos todos, em parte, intoleráveis. Mas não leve isso como um insulto: intolerável, na verdade, é o mais belo (e também pornográfico) dos elogios. Mesmo que nem todos enxerguem isso. Uma hora vão. Quando se tornarem intoleráveis o suficiente e existirem menos; puderem se esvair também. É, tenha fé no que digo: todos nós seremos suicidados em algum momento. Apenas não sabemos bem quando… ainda.


¹ A partir da leitura de Ana Kiffer em aula sobre o texto: “Van Gogh , o suicidado da sociedade”, de Antonin Artaud; caracterizaram-se as diferenças entre o “existir” e o “viver”. A análise desses conceitos, assim como a contextualização de seus múltiplos significados, e também os sentimentos provocados pelas palavras de Artaud, inspiraram a crônica apresentada a seguir.

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