por Fernando Andrade | jornalista e crítico de literatura
Vida: uma arte que embarca na ficção. Toda ficção é uma arte litorânea. Pés na terra mas de uma certa hora nos vemos nadando com pés e mãos nas águas mais profundas, de nós mesmos. Sim, somos seres perto do mar, basta ver como as tempestades exercem certa atração no imaginário coletivo onde as camadas do ser entram nos ventos, nas rajadas existenciais do medo, do que vem além de um horizonte por sobre o oceano.
Neste ano sob o forte efeito do receio do contato ao outro, vamos perceber formas especiais de narrar que podem ou não ser modificadas pelo vírus, um agente que adoece, mas também metaforiza a própria arte de contar histórias. Pois para contar histórias precisamos do corpo, ele é nosso agente deflagrador de pulsões onde a escrita se move e ocupa os espaços políticos. A invenção seria nossa tenra medida da sanidade, de contar em fluxos corretos? os jorros que a experiência nos puxa para fora.
Pensei nestas questões ao ler o novo livro de Letícia Palmeira, Voz mulher, pela editora Penalux, pois se já disseram que a verdade não passa apenas de uma ficção. É uma versão de um fluxo de latência de vida, emoções, afetos. A autora revisita seu ano de 2020, mas não traça diários de bordo sobre a marcação dos dias, assinalando hoje fiz isso. Num fluxo contínuo, cria um torvelinho de imagens sob a égide de um cuidado de si, muito que o filósofo Foucault já colocou em seus ensaios. O leitor é parte desta intimidade da autora, pois a nuance da escrita carrega cada pedaço de filigrana na autenticidade, emoção à flor da pele, por qual passa Letícia pessoa.
A Gênese do cuidado se mistura à especificidade do Gênero, olhar atento do feminino sobre eventos, onde as relações de tato, cuidado, respeito, palmilham cada chão pisado pela poeta na cidade hábito, nas ruas indo às hospitais e clínicas. Neste misto de ensaios ficcionais sobre a memória, o lugar aqui não parece de fala, mas sim, de raiz- pertencimento, referências, cartografias, endereços, em busca de um vasto continente amor.
Que resenha bonita! Você capturou a voz mulher que, acima de tudo, é pessoa singular e simples. Muito obrigada, Fernando.