Com todos os avanços que a humanidade passou, toda a produção de conhecimento, conseguimos olhar para a mitologia grega, percebemos que era uma narrativa que lançava um olhar sobre o mundo e sobre o homem, contudo, não trazia uma verdade absoluta que devia ser seguida de forma muda e cega. Basta uma simples volta à Grécia Clássica, para que percebamos a importância da narrativa mítica na fundação do pensamento filosófico, mas isso não implica que o mito fosse tratado como uma verdade, era apenas uma possibilidade de compreensão do homem e do mundo a sua volta.
Toda e qualquer civilização tem os seus ritos de passagem, suas narrativas mitológicas, por que apenas a narrativa mítica presente na Bíblia tem que ser a verdadeira, já que outros povos versaram sobre muitos temas ali presentes e suas narrativas não se tornaram o caminho para a tal verdade absoluta e o caminho para um paraíso metafísico, libertando o homem do corpo pecaminoso e terreno? Como fica a situação da mulher, que segundo o livro do Gênesis, ou texto de origem mundo (para os cristãos, é claro!), diz que o pecado entrou no mundo através da primeira mulher, Eva, ou seria segunda?
Pensando em todas as lacunas e interpretações enviesadas deixadas pelo livro sagrado, Adriane Garcia traz uma releitura de algumas personagens presentes nas sagradas escrituras, usando sua verve poética cheia de uma ironia fina, descontruíndo a tal leitura literal gritada nos templos, que jogou durante muito tempo e ainda joga sobre os ombros da mulher a culpa por todas as pestilências, usando o corpo feminino como instrumento de expiação para as desgraças humanamente construídas.
Pensando em tirar as escamas dos olhos do leitor, Adriane Garcia, em Eva-proto-poeta, traz uma poética que grita ao mundo os séculos de silenciamento da figura feminina, o eu lírico rebela-se e diz: “Varoa/Uma/Ova (p.22).”, esse poema-desconstrução demole a etimologia da figura subalternizada das mulheres, da varoa valorosa, mantra entoado nos púlpitos patriarcais e frios de um neopentecostalismo que impera em nosso país, pregando que a mulher deve acatar em silêncio os mandos e desmandos do cabeça da relação: o homem.
A mulher não baixa a cabeça e nem mostra subserviência no livro de Adriane, ela grita que é constituída da mesma matéria, colocando homem e mulher em pé de igualdade, como podemos ler em Adão não se enxerga: “Do mesmo pó/Do mesmo barro/ Da mesma merda (p.26).” A navalha poética de Adriane pega o discurso falocêntrico e o decepa, deixando um rio de interpretações para o leitor.
Em Patriarcal, há um questionamento sobre a famosa posição de mando homem: “Adão só quer/ Ficar por cima (p.28).” Mesmo com uma construção histórica e sociológica que confirme o poema-sentença aqui analisado, o que fica por cima é o verso cortante da poeta, que nos faz refletir sobre a constituição do patriarcalismo e suas nuances na sociedade.
O livro de Adriane é um convite à desconstrução do pecado original, aliás, é um convite a uma releitura da narrativa do Jardim e da tal queda do homem. A poeta injeta o veneno de Samael nos olhos do leitor, fazendo-o contemplar as possibilidades além do mundo fechado e pequeno do Éden, traz também a rebeldia de Lilith “que não volta nem fodendo”.
Eva-proto-poeta foi o livro mais forte que li nos últimos tempos. Passear por um tema delicado e desconstrui-lo não é uma tarefa para medrosos, mas para pessoas de coragem. A navalha afiada da pena de Adriane Garcia é uma katana retalhadora de mitos. Na obra da poeta a mulher não fica por baixo, mas por cima.
Evilásio Júnior
Poeta e Ativista Underground
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