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Maíra Valério é cria do fim da década de 80 e uma jornalista brasiliense que acredita na rapaziada, na mulherada e na cultura do-it-yourself. Ama frequentar lugares repetidos e mergulhar nas particularidades e anseios dos indivíduos que povoam esse planeta; especializou-se em gênero, sexualidade e direitos humanos; pesquisa mídia, mulher e envelhecimento no mestrado; teve o próprio caráter moldado por livrarias, shows punk e festas gay; é ansiosa, extrovertímida, hipocondríaca e escreve em zines, blogs, revistas, jornais, sites, bloco de notas do celular, cadernos, diários, papeis que encontra pelo chão e o onde mais der. Homens Que Nunca Conheci, recentemente lançado pela Editora Patuá, é o primeiro livro dela.
FERNANDO – Desconstruir uma narrativa de um conto começaria pelo olhar sobre ele? É tudo como a gente conta a estória, aqui não passando pela intenção, objetivo, mas sim, pelo humor. A arte de sublevar os estereótipos, as regras, as convenções. Fale disso.
MAÍRA – O humor é intenção. E é ferramenta para, justamente, expor o ridículo de situações corriqueiras que costumam ser naturalizadas mas, na verdade, são desagradáveis, toscas ou até violentas. No conto Priceless, por exemplo, em que uma fotógrafa de nu masculino conta um pouco de seu trabalho e de seus processos em um programa de televisão, utilizei algumas frases reais de fotógrafos, que trabalham com o nu feminino principalmente, retiradas de entrevistas, conversas e afins. A partir de uma colagem e adaptação de falas diversas, criei essa personagem que condensa pensamentos que refletem, diretamente e de maneira invertida, uma realidade comum e até banal, diariamente vista nas redes sociais.
Mas existem situações em que o humor é relativo e não intencional, e parte do background pessoal de cada leitor ou leitora em relação aos temas abordados. O conto Pai preocupado, por exemplo, em que um pai de família assiste pornografia gay escondido e alimenta desejos ocultos, é bem triste, pra mim, mas muita gente acha engraçado. Porém, entendo que trabalhar com quebra de expectativas e descortinamento de hipocrisias é estar sempre perto de desconstruções narrativas e do humor, seja um humor que de fato causa um riso solto ou aquele que faz com que você ria de nervoso ou constrangimento. De perto, afinal, todo mundo tem suas questões contraditórias e cada pessoa lida de uma maneira com isso.
FERNANDO – Você parte muito da linguagem e não tanto pelo conteúdo, para tecer seu olhar crítico sobre o machismo, a masculinidade. A linguagem pelo poder de deslocar os sentidos, tem um efeito forte sobre temas tão atuais como intolerância, e todos os ismos que se conservam.
MAÍRA – Não sei se faço isso, especificamente, até porque não consigo desconectar linguagem de conteúdo.
E não pensei, conscientemente, em criar algo que combata intolerância ou qualquer coisa do tipo, quis mais fazer um exercício de elucubrar e criar tanto sobre perspectivas do universo masculino, que é primordialmente machista, limitante e opressor, quanto sobre perspectivas atingidas por esse universo.
Um leitor, fofo e bem intencionado, falou do meu livro como algo para “desconstruir homens” e, na verdade, não tenho essa intenção. Se mudar algo em alguém, ótimo! Mas a leitura pode ter impactos diferentes em cada pessoa, nem sempre é um mergulho, pode ser mero entretenimento – e tudo bem. Acho que nós, mulheres escritoras, estamos sempre sendo colocadas em um papel de combatentes do machismo de modo que todos os outros nossos feitos e habilidades acabam ofuscados – e como se toda a nossa produção fosse rasa, proselitista e homogênea. Claro que, enquanto indivídua, acadêmica, jornalista, persona digital ou qualquer outra coisa, tenho um grande envolvimento e apreço por questões relacionadas a feminismo, direitos humanos, cultura, pautas antirracistas e afins. E tudo isso pode estar visível para quem lê, de algum modo, mas pode também não estar, por conta do que mencionei na pergunta anterior, do diálogo que o livro acaba tendo com as questões da própria pessoa que lê.
Quero que as pessoas leiam o meu livro e sintam. Não sei o quê, pois não tenho como controlar, mas que sintam algo, sejam mexidas por dentro. E que o combate aos ismos esteja principalmente do lado de fora da publicação, em mulheres e minorias em geral sendo mais incentivadas, mais compradas, mais lidas, mais publicadas e mostrando a diversidade de técnicas, referências, ideias, angústias e alegrias que possuem, como qualquer escritor canonizado, sem a obrigatoriedade de estarem sempre a postos com um manual didático em mãos que explique todas as mazelas do mundo para que, a partir daí, possuam legitimidade.
FERNANDO – Hoje em dia se fala muito sobre o lugar de fala. Mas, pegando um pouco das questões sobre o humor, a risada sobre os nossos conceitos, moldes, é possível partir do individual quando se discute o humor, ou ele gera mais um efeito sobre o coletivo?
MAÍRA – Acho que o humor sempre parte do individual, pois um indivíduo só é capaz de expressar a sua própria visão. Contudo, dependendo do alcance dessa expressão, ela possui efeitos sobre o coletivo, impulsiona agendas e tendências e ressalta não apenas pontos de vista, mas também posições políticas. O individual é parte do todo, somos peças de grandes e complexos quebra-cabeças. A questão é: quais peças queremos ser e de quais quebra-cabeças queremos fazer parte? E o que causa riso – e o porquê – diz muito de quem ri, né?
FERNANDO – Você tem um facilidade para falar sobre um conjunto de normas ou regras que fazem um coletivo, como as tribos, culturais, que faziam a cabeça nos anos 80 e 90. Esta escrita que parece descontruir painéis geracionais, me fale como é escrever sobre eles?
MAÍRA – Tenho? Obrigada! Mas não consigo identificar que tribos são essas que estão apenas nos anos 80 ou 90 visto que minhas inspirações foram, em grande parte, vindas do aqui e agora, se podemos dizer assim. Então não sei como falar sobre como é escrever sobre essa desconstrução de painéis geracionais pois, intencionalmente, não estabeleci pontes entre gerações, embora eu fale, sim, sobre diferentes pessoas, de diferentes realidades, incluindo aí, faixas etárias – ainda que nada fique muito explícito, pois escolhi não falar tanto de números, de localidades exatas, de aparências. Mas é sempre legal ver a percepção do outro, que acaba por ir além do que imaginamos inicialmente.