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FERNANDO – Há um olhar do narrador atento e observador sobre a história de Anja. Não é um olhar imparcial onde a vida da personagem não lhe causa alguma coisa, sobre o contar com o afeto, mas claro, ele não esquece de todos os pormenores da narração. Como você construiu este narrador?
MARCELA O processo de construção do narrador de Nem sinal de asas foi bastante longo e envolveu vários testes, erros e acertos. Minha ideia inicial era que a história fosse narrada em primeira pessoa, pela Anja, no momento da sua morte. Mas depois de algumas páginas eu percebi que ela não teria o distanciamento ou a imparcialidade para contar daqueles momentos e escolhas que foram tão determinantes na sua trajetória – como uma pessoa que viveu na ponta dos pés, muitas vezes ela não enxergava o próprio caminho, seguia sem rastros.
Decidi, então, que o narrador seria um espectador muito próximo, praticamente colado à protagonista, mas muitas vezes mais atento às suas questões do que ela mesma. Alguém que fica com vontade de interferir, mas não o faz, pelo bem da narrativa. Há afeto, mas há uma história a ser contada – e isso parece ser o mais importante.
FERNANDO – O anjo é um ser que está ligado não a mácula, mas sim, uma parte imaculada, tanto que falamos de anjo caído, Satanás. Qual a função do nome dado a mãe para a filha e se existe alguma ambiguidade nesta nominação?
MARCELA – O nome Anja é, de certa forma, uma representação da vida da protagonista: ela, que sempre quis ser invisível, despercebida, comum, carrega um nome improvável, chamativo, um convite irrecusável para perguntas e conversas que ela vai sempre tentar evitar. Uma mulher alta, preta, esvoaçante, procurando mil formas de não ser, não estar. Gosto muito da passagem do livro que deu origem ao título e que explica um pouco essa escolha do nome e tudo o que ele significa:
Ela tinha poucos anos quando as brincadeiras começaram, as pessoas que diziam que seu nome era esquisito, que seu nome era engraçado, as pessoas que riam muito quando o seu nome era dito logo em primeiro lugar na chamada da escola e, depois, quando não havia escola, no jardim do prédio quando um amigo qualquer quisesse gritar por ela sempre tão bem escondida na hora do esconde-esconde e depois e todas as vezes que ela aparecia nos desenhos infantis com asas sendo que ninguém mais tinha asas e ela também não tinha, ela já tinha olhado as costas no espelho muitas e muitas vezes e não havia nem sinal de asas, crescidas ou em broto. E um dia uma versão adolescente dessa menina escutou Ângela e achou que fosse com ela, mas depois viu que não, que ngela era uma mulher tão bonita e sorridente, uma adulta real de cabelos vermelhos e batom vermelho e dentes bonitos e caminhava como se soubesse aonde ia (e ia pra dentro do prédio em que ela morava) e desde então, pra quem era novo em sua vida e não sabia da história estúpida das asas, ela dizia – sorridente e como se soubesse aonde ia – que o seu nome era Ângela.
FERNANDO – Para além do bem e do mal do cristianismo, as ações as pessoas não podem mais serem rotuladas pelo viés binário de certo\ errado \ bem\ mal. Há luz e sombras no humano como um todo. Anja repercute nela toda uma visão de si mesma, muito do que recebe dos outros de afecções ruins sobre sua cor da pele. Aceitação é uma parte muito difícil num mundo cheio de ódios, e repulsas à individualidade de cada um. Fale um pouco disso.
MARCELA – É uma questão curiosa, porque acredito que Anja é, na mesma medida, muito crítica em relação a si e muito – extremamente – tolerante em relação ao outro. É como se ela entendesse e respeitasse o direito ao erro, ao feio, ao falho – mas não nela, nunca. Assim, as suas sombras vão se tornando maiores e mesmo sem perceber, ela vai absorvendo também o que não é e não deveria ser dela: o porteiro, a mãe, o vizinho, o amigo. E ela deixa que a visão do outro a defina, até o seu último dia.
É justamente por isso que os raros momentos em que ela consegue se libertar disso, como quando deixa os cabelos soltos e provocantes aos olhos da mãe, é que conseguimos conhecê-la de fato.
FERNANDO – A mãe parece uma pessoa cheia de conflitos internos e que de certa maneira perpassa na relação com a filha. Esta imagem que parece especular, mas que traz também, a marca da diferença ou da singularidade. Somos filhos mas também demasiado humanos em nossos desejos e volições. Como foi feita a relação das duas?
MARCELA – A relação de Anja e Dulce é uma espécie de espinha dorsal do romance. O preconceito, a rejeição e os gestos de Dulce com a filha, ainda bebê, são determinantes para que Anja tenha essa sensação de não pertencimento, é dessa ausência que nascem todas as outras.
Mas Dulce não é uma vilã. Ao seu modo, com a sua humanidade, ela se culpa, ela ama, ela se cobra ser uma mãe perfeita, se arrepende. Ela se ressente, busca o afeto, o abraço. E as duas se moldam, na falta do Francisco, que era quem parecia ser o equilíbrio.
FERNANDO – Como a tristeza funciona dentro de um romance, que efeito ela tem para o leitor? Você acha que o efeito para o leitor é de distanciamento ou aproximação?
MARCELA – Me lembro que quando comecei a escrever esse livro, que eu sabia que seria inevitavelmente muito triste, fiz uma postagem perguntando às pessoas qual era o livro mais triste que haviam lido. E acho que esse foi o post mais comentado das minhas redes sociais, todo mundo tem um livro muito triste e muito marcante. Gosto de acreditar, então, na aproximação. E não porque a gente gosta de se sentir pra baixo ou ver a dor do outro, mas porque nos tornamos mais humanos.
Não acredito na tristeza como uma estratégia para conversar ou conquistar um leitor, mas sei que há aí uma potência que não deve ser desconsiderada – enxergar fraquezas nos dá mais coragem para admitir as nossas, né?
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