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FERNANDO – Como foi construir sua narradora entre uma marcação dos acontecimentos narrados por ela na Itália, mas uma interessante nuance de perfil, em que sua autenticidade parece escamotear para uma autoficção, embaralhando os limites do real na ficção. Fale disso.
MARINA – A construção de uma autoficção foi lapidada durante o processo. Eu quis me aproveitar do apetite voyeurístico do leitor e fico o tempo todo na esquizofrenia entre o deixar os acontecimentos fluírem naturalmente e o interromper da narrativa para dar as impressões dessa narradora que se lembra dos fatos e/ou delira. Espero ter conseguido construir uma unidade em todas as histórias.
FERNANDO – Você desenha a Europa como um forma de latência no desejo, por sua história, mas ao mesmo tempo, há uma projeção que não se realiza pelo que acontece à personagem-narradora quando as relações se dão com personagens do roteiro em cada lugar. Por que há essa dicotomia do querer estar, mas uma certa decepção com o desenvolvimento dessas relações?
MARINA – Acho que o “querer estar” talvez seja a chave de tudo. O que a narradora e eu, autora, temos assumidamente em comum é o desejo de tudo viver e experimentar. Nós duas acreditamos piamente que o mais importa na vida é colecionar experiências. No entanto, ao mesmo tempo em que as experiências narradas são enriquecedoras, elas carregam o estranhamento do não pertencimento. É como uma interrupção, um anticlímax da experiência, dar-se conta de que não se pertence a um lugar. Como as interrupções que a narradora faz nas histórias, fraturando o curso natural do rio, marcando o incômodo, a presença deslocada, como muitas vezes aconteceu comigo, autora, nos tempos que eu relato nas histórias. De novo, é a esquizofrenia do querer estar e do entender que não se deveria estar.
FERNANDO – Há um certo espírito antropológico de pertencimento de cada espaço lugar que a narradora se encontra. Não é um lugar do estrangeiro-turista, mas de uma artista que colhe informações sobre o tropos daquele local para uma imagem que não será mental, mas sim fílmica. Este colher de imagens como foi trabalhado na hora da escrita?
MARINA – credito que todo artista seja um antropófago. Eu fui e sou uma andarilha consciente disso. Quando eu “vivia” as histórias narradas no livro, eu não sabia que um dia eu as transformaria em livro, sabia que estava fazendo experiências para um vida toda, que estava criando o meu repertório, que poucas pessoas tinham essa oportunidade. O meu olhar sempre foi mais próximo das narrativas audiovisuais, então, a imagem sempre sobressaiu à palavra para mim. E as imagens do Velho Mundo, as cidades como mosaicos de vários períodos históricos, os museus, tudo isso sempre foi muito forte. Na hora da escrita, eu fui recuperando as sensações que deixei anotadas em vários lugares, como um arqueólogo que vai fazendo um trabalho de reconstrução de formiguinha. Eu tinha anotações em papel, em e-mails, em cartas, até num antigo disquete que consegui gravar num pen drive. Mas, mais do que tudo, me esforcei pra me conectar com algumas emoções que narro nas histórias, como caminhar até a Acrópole de Lindos, na ilha grega de Rodes, por exemplo. Foi uma das coisas mais lindas que já senti e espero ter conseguido transmitir isso no texto.
FERNANDO – Há uma intensa paisagem cultural nos contos, tráfico de drogas, um geo espaço bem político onde há uma certa contemporaneidade na ficção. Como foi trabalhar com uma Europa mais real do que aquela mítica dos cartões postais onde não se fala em refugiados, em nacionalismos fóbicos, entre outras coisas?
MARINA – Pra mim, foi natural porque essa Europa que não está nos cartões postais foi a minha casa por alguns anos. Então, como eu precisei fincar os pés ali, vivi coisas que um turista não pode viver, por estar de passagem. E isso faz uma virada de perspectiva mesmo, de certa forma, é como estar nos bastidores, observando a plateia diante do espetáculo. Eu me senti um pouco assim na Grécia, por exemplo, que era povoada de turistas que iam e vinham, toda semana havia um grupo diferente de pessoas e nós, dos staffs de bares e restaurantes sempre ali, vivendo a mesquinhez do dia a dia, com as fofocas comezinhas que os turistas ficavam completamente alheios. Uma coisa que os europeus em geral ressentem é o quanto aquelas terras antigas já deixaram para o mundo, uma terra velha onde os jovens têm pouco a fazer, tudo já foi inventado. Enquanto nós, do Novo Mundo temos o vigor das novas terras e temos espaço para inventar e inovar, uma energia que eles admiram na gente. Em relação à xenofobia, há lugares mais xenófobos que outros e pessoas mais xenófobas que outras. Em locais cosmopolitas, como Londres e Bruxelas, se sente pouco a xenofobia. A Itália em geral é bastante xenófoba, eles adoram a pretensa “alegria” brasileira, cantarolam em ritmo de samba quando contamos que somos brasileiros, mas têm uma visão bastantes estereotipada das brasileiras, infelizmente, mesmo em cidades grandes como Milão.
FERNANDO – Há certas referências cinematográficas nos seus contos, o primeiro me lembrou “De olhos bem fechados” do Kubrick. Como foi trabalhar certas referências dos filmes que você possivelmente já viu, nas narrações?
MARINA – As referências fílmicas povoam a minha mente acho que de modo orgânico, não sei explicar, porque convivo com elas há muito tempo e venho colecionando essas referências nos últimos vinte anos. E são múltiplas, desde “Sonhos”, do Kurosawa, ao “Oito e Meio” do Fellini. Como um caleidoscópio que se mistura aos meus próprios delírios e devaneio. De todo modo, eu não pensei em um filme especificamente para construir nenhuma das histórias. Eu gosto de citar filmes como alegorias de alguma situação, mas não escrevi nenhuma das histórias inspirada na estrutura dos filmes que amo. O primeiro conto que você se refere “Estranha no ninho”, em quem conto a história do jantar de formatura de um nobre italiano num antigo convento do século XII, eu associaria mais ao “Indiana Jones” (rs). Mas adorei a lembrança do Kubrick.
FERNANDO – Você fecha muito bem o livro com uma linda homenagem à estética do som, da música. Quase um doc escrito sobre a paixão do tocar, compor. Fale disso.
MARINA – É verdade, quase como um documentário escrito. Eu quis fechar o livro com essa homenagem à comunidade “VillaMais”, com o conto que é o mais biográfico de todos. Porque, infelizmente, como acontece com frequência no audiovisual (dos projetos não ganharem as telas), o documentário sobre aqueles músicos não aconteceu. Era muito honesto e visceral o que vi naquele grupo. Nunca tinha visto pessoas tão coerentes e tão apaixonadas pela arte como eles. Às vezes, eu achava patológico, exagerado, egoísta o modo como eles viviam naquela comunidade. Porque eles se dedicavam exclusivamente à música, e eu via como os relacionamentos amorosos e familiares deles eram fraturados, como tudo ficava em segundo plano, porque as experiências que envolviam a música estavam sempre em primeiro lugar. E aquele casarão agitado, cheio de gente o dia todo, invariavelmente fazendo alguma atividade ligada à música, era uma coisa muito única. Passar um tempo ali foi uma das experiências mais interessantes que já vivi. Tudo graças a um dos personagens mais inusitados que conheci na vida, o Davide, que, para começo de conversa, não usava sapatos e morou por sete anos numa caverna que foi esconderijo de um “partigiano” na Segunda Guerra Mundial.
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