HENRIQUE – A palavra cantos, que está presente no título de meu livro de estreia (Quatro cantos, Patuá, 2020), é propositalmente ambígua. De um lado, ela remete, é claro, à musicalidade que constitui toda obra poética e, nesse sentido, é altamente significativa; de outro, ela traz uma ideia mais topológica, dos diversos lugares que meus poemas – pelo menos assim espero – instituem e frequentam. É curioso pensar por esse ângulo na imagem do corpo humano, que aparece com insistência ao longo do livro, em especial no “terceiro canto: cantares do amor e da carne”. Assim como há os quatro cantos do mundo, há os quatro cantos do corpo, que possui quatro membros e cuja estranha simetria – digamos, bilateral – eu tento emular no livro. Daí, talvez, certas coincidências entre seções que parecem se espelhar, como o segundo e o quarto cantos, intitulados respectivamente “poemas do chão da cidade” e “poemas da opacidade”. O aprendizado sobre pertencimento é algo que ocorre mais fortemente, a meu ver, no primeiro canto, “antepassados”, uma série de dez poemas que fala sobre a família de um modo um tanto indeterminado e abstrato, seja enquanto nossos ancestrais biográficos (pais, mães, irmãos, avôs e avós etc.), seja enquanto os antepassados da própria espécie humana. Não por acaso, também nessa seção aparecem várias referências às partes do corpo humano, que se cria, no caso, a partir da perplexidade de se descobrir um homem, animal diferente dos cães e dos homens com cabeça de cão, uma figura mítica que acho muito sugestiva. Ou seja, todas essas ambiguidades estão de algum modo interligadas e perpassam os quatro cantos que compõem o livro.
FERNANDO – O animal não busca uma explicação do sintoma, ele é apenas uma latência sobre a fome, sobre um nome no processo de formação de uma identidade? E como estas relações de afeto e busca se provocam no seu livro, principalmente na seção 1?
HENRIQUE – A animalidade é uma dimensão de fato muito atuante no primeiro canto, “antepassados”. Como disse antes, há aqui uma investigação sobre as raízes do humano que se depara, desde o início, com outros animais, os quais não são necessariamente nossos ancestrais do ponto de vista evolutivo, mas guardam relação com os homens. Assim, as figuras do cão e do cinocéfalo me são caras, porque remetem a um universo muito familiar para mim – as plantações de cana que circundam minha cidade natal, Ribeirão Preto, e tantos outros lugares em nosso continente americano, neste e em outros tempos. Poucas pessoas, no Brasil contemporâneo, sabem que os cães eram usados, nas plantações de cana caribenhas durante a colonização, para perseguir os escravizados que haviam fugido, uma experiência absolutamente terrível e dolorosa. Talvez menos ainda saibam que algumas das primeiras tribos indígenas encontradas pelos europeus nas Américas, por serem canibais, eram vistas como uma espécie intermediária entre o humano e o animal – eis justamente a imagem do homem com cabeça de cão, que pode ser encontrada em gravuras da época do “descobrimento” e posteriores. Em meu livro, especialmente no primeiro canto, como você notou, eu quis explorar essa busca por afeto – que se confunde com a busca por um nome, isto é, por uma filiação baseada no pertencimento a uma família – nos limiares do que entendemos normalmente como antepassados, a partir de algumas imagens que pertencem à minha observação mais ancestral, isto é, os campos de cana-de-açúcar que via na infância, com os animais (humanos ou não) que correm pelas fileiras como se mergulhassem num mar verde. Essa imagem da plantação de cana (ou milho) como um mar terrestre e invertido, aliás, está presente em nossa tradição poética e musical, sobretudo nordestina, indo de João Cabral de Melo Neto a Belchior, entre vários outros. E, no caso do meu livro, penso que os campos de cana-de-açúcar são tão doces quanto aprisionadores e terríveis.
FERNANDO – Até que ponto posso dizer que sua poética esta muito perto de um testemunho? na parte da forma e não tanto do conteúdo. E como isso permeia-se na poética do livro?
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