Fernando Andrade entrevista o poeta Henrique Provinzano Amaral

henrique provinzano amaral quatro cantos editora patuá - Fernando Andrade entrevista o poeta Henrique Provinzano Amaral
 
 
 
 

FERNANDO – O que os cantos simbolizam para o corpo de um homem? Uma aprendizagem sobre pertencimento? Ou algo menos material, como um tateio pela palavra que não define nada ou não significa, apenas exprime uma musicalidade intrínseca.

HENRIQUE – A palavra cantos, que está presente no título de meu livro de estreia (Quatro cantos, Patuá, 2020), é propositalmente ambígua. De um lado, ela remete, é claro, à musicalidade que constitui toda obra poética e, nesse sentido, é altamente significativa; de outro, ela traz uma ideia mais topológica, dos diversos lugares que meus poemas – pelo menos assim espero – instituem e frequentam. É curioso pensar por esse ângulo na imagem do corpo humano, que aparece com insistência ao longo do livro, em especial no “terceiro canto: cantares do amor e da carne”. Assim como há os quatro cantos do mundo, há os quatro cantos do corpo, que possui quatro membros e cuja estranha simetria – digamos, bilateral – eu tento emular no livro. Daí, talvez, certas coincidências entre seções que parecem se espelhar, como o segundo e o quarto cantos, intitulados respectivamente “poemas do chão da cidade” e “poemas da opacidade”. O aprendizado sobre pertencimento é algo que ocorre mais fortemente, a meu ver, no primeiro canto, “antepassados”, uma série de dez poemas que fala sobre a família de um modo um tanto indeterminado e abstrato, seja enquanto nossos ancestrais biográficos (pais, mães, irmãos, avôs e avós etc.), seja enquanto os antepassados da própria espécie humana. Não por acaso, também nessa seção aparecem várias referências às partes do corpo humano, que se cria, no caso, a partir da perplexidade de se descobrir um homem, animal diferente dos cães e dos homens com cabeça de cão, uma figura mítica que acho muito sugestiva. Ou seja, todas essas ambiguidades estão de algum modo interligadas e perpassam os quatro cantos que compõem o livro.

FERNANDO –  O animal não busca uma explicação do sintoma, ele é  apenas uma latência sobre a fome, sobre um nome no processo de formação de uma identidade? E como estas relações de afeto e busca se provocam no seu livro, principalmente na seção 1?

HENRIQUE – A animalidade é uma dimensão de fato muito atuante no primeiro canto, “antepassados”. Como disse antes, há aqui uma investigação sobre as raízes do humano que se depara, desde o início, com outros animais, os quais não são necessariamente nossos ancestrais do ponto de vista evolutivo, mas guardam relação com os homens. Assim, as figuras do cão e do cinocéfalo me são caras, porque remetem a um universo muito familiar para mim – as plantações de cana que circundam minha cidade natal, Ribeirão Preto, e tantos outros lugares em nosso continente americano, neste e em outros tempos. Poucas pessoas, no Brasil contemporâneo, sabem que os cães eram usados, nas plantações de cana caribenhas durante a colonização, para perseguir os escravizados que haviam fugido, uma experiência absolutamente terrível e dolorosa. Talvez menos ainda saibam que algumas das primeiras tribos indígenas encontradas pelos europeus nas Américas, por serem canibais, eram vistas como uma espécie intermediária entre o humano e o animal – eis justamente a imagem do homem com cabeça de cão, que pode ser encontrada em gravuras da época do “descobrimento” e posteriores. Em meu livro, especialmente no primeiro canto, como você notou, eu quis explorar essa busca por afeto – que se confunde com a busca por um nome, isto é, por uma filiação baseada no pertencimento a uma família – nos limiares do que entendemos normalmente como antepassados, a partir de algumas imagens que pertencem à minha observação mais ancestral, isto é, os campos de cana-de-açúcar que via na infância, com os animais (humanos ou não) que correm pelas fileiras como se mergulhassem num mar verde. Essa imagem da plantação de cana (ou milho) como um mar terrestre e invertido, aliás, está presente em nossa tradição poética e musical, sobretudo nordestina, indo de João Cabral de Melo Neto a Belchior, entre vários outros. E, no caso do meu livro, penso que os campos de cana-de-açúcar são tão doces quanto aprisionadores e terríveis.
 
FERNANDO –  Até que ponto posso dizer que sua poética esta muito perto de um testemunho? na parte da forma e não tanto do conteúdo. E como isso permeia-se na poética do livro?

HENRIQUE – Sinceramente, não acredito que minha poética esteja muito perto de um testemunho, sobretudo se pensamos no aspecto formal. Também não sei se haveria uma poética no livro, mas essa é outra discussão… Existe uma espécie de clichê crítico e criativo que consiste em reconhecer (ou escrever) um livro de estreia como uma obra sempre pautada pela biografia, pelo testemunho da aventura de estrear no palco da literatura. Olha, eu busquei evitar, de propósito, essa postura, até porque não sou partidário dessa imagem da literatura como um palco sempre iluminado e à espera de alguém para ocupar a boca de cena… Até brinco com uma paródia desse imaginário no poema “drama em três atos”, do segundo canto. Ou seja, se há algum testemunho nos quatro cantos – e coloquei, também de propósito, as passagens mais marcadamente biográficas na seção final –, acredito que seja na mesma medida em que todo livro de poemas é profundamente biográfico, por ser obra de uma subjetividade. Logo, não quis fazer da minha vida pessoal, que, aliás, não tem nada de extraordinário, o foco de interesse dos poemas. Pelo contrário, procurei esperar o máximo de tempo para que estes amadurecessem sem pressa (foram mais de quatro anos entre o início da escrita e a publicação) e evitar uma certa retórica da ingenuidade estreante comum aos nossos tempos… Se consegui ou não, cabe ao leitor e à leitora decidir.

 

FERNANDO – A terceira e quarta seção partem para o lado físico do corpo e suas solicitações sobre o querer ( aqui penso na canção do Caetano sobre o tema). A seção poemas da opacidade persegue o outro em algum canto tanto a referência de lugar quanto uma melodia longe, inalcançável. Mas é uma forma de posse apenas formulada pela distância da alteridade. Fale disso.

HENRIQUE – Como aludi na primeira resposta, o corpo humano enquanto entidade desejante é um dos pilares do terceiro canto. E aqui me refiro a desejo nos sentidos, ao mesmo tempo, mais sublimes e mais baixos que o corpo humano pode oferecer – daí a necessidade de falar do sexo, de dar nome às vísceras, enfim, de tratar da carne, para empregar uma palavra tão elevada (basta pensar no sentido cristão), quanto profana e prosaica. O quarto canto, a meu ver, traz uma atmosfera um pouco diversa, ainda que essa última parte do livro combine elementos das três anteriores. Conforme você reconhece, eu busco ensaiar nela uma “forma de posse” que se dá conta, a todo o tempo, da distância entre os seres, os lugares, os tempos – ou seja, da alteridade no sentido mais poderoso do termo. Mas essa tentativa de apreensão se constrói com base na ideia/imagem de “opacidade” – inspirada em alguns escritos do escritor e pensador martinicano Édouard Glissant –, ou seja, de que a alteridade deve ser profundamente mantida e respeitada como tal, mas que isso não impede certo nível de partilha subjetiva. Assim, nessa série de três poemas mais longos – na ordem, “google street view”, “Porto Príncipe & Salvador” e “Luzia” –, vou testando maneiras de acessar lugares próximos e distantes, tempos presentes e passados, pessoas vivas e mortas. Conforme escreve Caroline Micaelia no belo posfácio ao livro, há aceitação dessas dessemelhanças, palavra que ela emprega a partir de uma referência que faço a um poema de Gregório de Matos, também retomado por Caetano. Além disso, como você pontua, todo esse movimento é perpassado por melodias distantes, ora reconhecíveis, ora inalcançáveis, sobretudo em “Porto Príncipe & Salvador”, que busca estabelecer uma ponte poética (e musical) entre a Bahia e o Haiti.

 

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