ALEXANDRA – O título do seu novo livro de poemas aponta para o entrelugar, para a fenda e os espaços vazios entre as partes de um todo. Isso se dá a partir dos jogos de linguagem, com um trabalho de confecção linguística na sua tessitura mais rica e experimental, em que o reino do implícito comparece como a imagem do silêncio e do sugestivo. Você poderia nos falar mais um pouco desta relação entre o título e a urdidura de seu tecido poético no conjunto de seus textos?
FERNANDO – Partindo do poema que fala do sexo, do cio, tento reverter esta ideias para o novelo da escrita, da intimidade do escrever, que é sempre muito (an)interior, para dentro. Penso haver uma latência do fabricar, letras, palavras, e frases, no sexual, linhas são sempre um enlace erótico com a linguagem. A dança, nelas, ondulações, esta relação do corpo que guarda interioridades, intervalos, memórias, que quis identificar no meu novo livro.
ALEXANDRA – Há um diálogo entre poesia e filosofia, sendo você um escritor da estirpe dos filósofos-poetas, como Nietzsche. O signo linguístico, com sua dupla face de significado e significante, é reconfigurado a partir da rede dos questionamentos, das perguntas que não têm uma resposta definitiva e fechada, mas que se abrem para novas problemáticas e complexidades. Fale-nos mais na relação entre a filosofia e a poesia na sua obra que mistura análise crítica e lirismo, quebrando os conceitos arraigados da tradição ocidental.
FERNANDO – Conceituar também é partir para o poema. Na verdade, a poesia tem o lado musical da filosofia. É um arranjo sobre a veste da linguagem, usando relações mais da música, como ritmo, melodia, tom, entonação da voz. Neste livro, em especial, parto do conceito do Ser de um animal perdido pela( Para) religião, que tenta voltar a um tipo de essencialidade humana. Teremos uma poesia ideal? utópica, ou falha, como uma cobra que faz trovas, em redenção? Esta noção, onde há erro – dá espaço para a brincadeira, onde os conceitos podem vibrar e ou dançar, pois não são rígidos. Pois há mudança.
ALEXANDRA – A sua poesia une forma e conteúdo numa simbiose perfeita, sem deixar nenhuma delas se sobressair sobre a outra. No seu livro, para além do tom analítico, você explora as várias linguagens, artes e saberes. Há um misto entre lógos, música e imagem, na visão da tríade poundiana. Com ritmo, musicalidade e cadência, você atinge a construção de metáforas e ideias bem relacionadas. A metalinguagem é muito bem costurada na sua artesania poética, num sentido autorreflexivo sobre seu próprio fazer poético. Explique-nos mais sobre essas questões.
FERNANDO – Sim,a forma começa primeiro. Mas preciso me conter a não falar demais. Pois a forma é espaço curto de matéria criativa da linguagem. Quero fazer um romance nos meus poemas, ter estes espaços onde a imaginação do leitor constrói uma fábula, uma bio, minha ou dele. É Preciso Tessitura destes saberes até o ponto deles serem mínimos, na arte de cruzar referências, citações, e olhares. A metalinguagem talvez seja esta posição de deitar a história ou verso na sua própria essencialidade dialógica de fazer o traçado da biografia e da ficção, e da poesia como invenção, pura e simplesmente.
ALEXANDRA – A imagem da cobra, da serpente urobórica, toca o sentido dos círculos que se fecham numa simetria perfeita, entre o caos e a ordem, o inconsciente e consciente. Essa dinâmica ambígua pode ser percebida na questão dos gêneros literários. No texto que abre o seu livro, temos um conto, que também fecha a obra, na sua construção de circularidade, uma sensação de déjà vu, em que o eterno retorno nietzschiano se imbrica numa alquimia perfeita. Nestes “interstícios”, entre os contos, temos variados poemas que fundem lirismo e prosa. A poesia e a prosa na sua obra não são elementos estanques, mas carregados de hibridismo. Aponte-nos mais sobre estas reflexões.
FERNANDO – cobra é a dualidade do corpo que não é binário. A cobra se torna uma menestrel por que acabou de se achar depois de lograda ou amaldiçoada no paraíso. O sentido anti classificatório entre rótulos do bem do mal, do belo e feio, a serpente depois de poeta pode ser apenas mortal e falha com qualquer um de nós. A poesia não eleva nada, não traz paz de espírito ao que a fazem, dela, um evento somente estético e ritual. A cobra mexe no jogo entre acerto e erro, entre maquinação e fabulação, ciência, e espiritualidade. Por isso a importância das fendas, pois só nelas a certeza, a convicção, pode se arruinar, e transformar a matéria textual em espaço em branco para imaginar até o que está por entre os gêneros.
ALEXANDRA – A referência é a relação entre o real e a linguagem. Você trabalha muito bem com essa relação entre as palavras e as coisas, numa dimensão foucaultiana, onde temos os reinos das similitudes e diferenças. No discurso amoroso, por exemplo, você explora o prazer do texto (Barthes), que leva o leitor a um encontro com o ser, a essência do poético, mas sem deixar de lado o teor político e social. Há uma crítica mordaz, unindo o fator lírico a uma análise social do sistema opressivo da máquina voraz que esquarteja os sentidos, a liberdade e o prazer dos seres. Uma máquina que aniquila a individualidade pelo matiz de uma coletividade massificada e alienada. Os seres desvalidos e excluídos, os anônimos no meio de uma sociedade violenta, destrutiva e caótica. Como uma navalha que corta e sangra a imagem perfeita do mundo paradisíaco, desconstruindo a versão “de que vivemos no melhor de todos os mundos possíveis” (em alemão: Die beste aller möglichen Welten), expressão cunhada por Leibniz, sua poética discute a relação palimpséstica entre violência, erotismo e cio das palavras, em seu recorte nada ameno, criando-se a ponte mais dura com a poiesis (sem abandonar o lirismo), mas sem floreios ou versos adocicados, lembrando-nos da visão drummondiana, que unia o abstrato e o concreto em expressão ambivalente de uma língua plena de vitalidade e, ao mesmo tempo, sensibilidade. Você percorre a carnalidade dos sentidos através de versos imagéticos, mas, ao mesmo tempo, perfurantes, com recursos sonoros, como a canção dos pássaros em seus voos mais altos pela caligrafia lingual, dando um sentido ficcional ao mundo, mimetizando de forma metamórfica a relação entre a existência e o experimento lingual. Dessa forma, você consegue alcançar a maestria da linguagem poética. Discurse mais sobre estes apontamentos.
FERNANDO – Trabalho a referência como lastro de unir diferenças. Cada autor é diferente em sua imaginação. Porém, podemos estar juntos, quando temos aquele mesmo espírito cômico de piada, de um insight poético. A citação ou a referência, é esta imanência de estilo que alguns têm próximos, quanto a temáticas e representações mentais, Me sinto próximo de Calvino, mas não escrevo como ele. Embora, tenha a espiritualidade do jogo, do cômico, que nos aproxima. Este trabalho é uma forma de traçar a humanidade, por exemplo, de uma pedra que já foi caminho do poeta. Não é apenas uma homenagem, mas sim, um traçado sobre a linha longeva por qual certos caminhos que a literatura espraia na mente de um escritor.
ALEXANDRA – Você agrega em sua poesia a tessitura intertextual com referências literárias e extra literárias. Há diversas artes, como a pintura, o cinema, a música, a poética. Temos as várias camadas e faces das artes em suas expressões multifacetadas, revelando suas analogias e especificidades. Ao mesmo tempo, na sua literatura, temos uma gramática outra, não submetida aos ditames do padrão normativo, mas um trabalho de inventividade poética, que faz uma peleja, um repente entre as classes gramaticais num discurso que não se dispõe ao binarismo e ao estruturalismo. Anárquico, subvertendo o cânone mais tradicional, você reconfigura, pelos véus da linguagem, em sua literariedade mais fértil, as imagens mais raras e a música das esferas. Na música, por exemplo, você cita Alceu Valença, Zeca Baleiro, Zé Ramalho e Rosa. Une também o popular e o erudito, o antigo e o contemporâneo. Na sua dinâmica intertextual, faz referências a autores consagrados como Kafka, Joyce e Drummond e escritores amigos contemporâneos, mas com grande potencialidade literária, como Patrícia Porto. Como a imagem de um Proteu que adquire várias formas, sua poética é plural, não se coadunando com um apelo à monotonia, ao contrário, há variedade semântica e estrutural, criando-se assim uma inventividade com as palavras e sua relação com a experiência da matéria. Disserte mais sobre essa relação intertextual com as artes e a relação delas com a especificidade da Literatura em sua obra.
FERNANDO – Sim, pois trabalho o recurso da transversalidade, aquilo que cruza, que penetra entre pensamentos que podem ser unidos ou separados. Meu texto tanto da ficção quanto da poética é este rio onde correm todas minhas eventualidades, enquanto sensação de vida que caminha e escreve memória que traz não lembranças, mas traçados de leituras desejos por autorias que vocalizam a linguagem. A linguagem não é enredo, é a forma de conectar o que já foi desenhado por outros, é um processo de captura do que já foi cerne da sua leitura-desejo em outros tempos.
ALEXANDRA – Na sua obra poética, há uma polifonia de tradições religiosas, desde as religiões afro-brasileiras, às referências à cultura indígena, com passeios pelos mitos orientais, o grego, unindo o orientalismo ao ocidente, mesclando o universal e o particular, numa transfiguração da linguagem em forma corporal com o objetivo de se criar um amálgama, um mix cultural entre linguagem e corpo através dos diálogos com os mitos. Explique mais essas pontes entre linguagem, corpo e mito.
FERNANDO – Sim o corpo com forma de contágio entre linguagens. O mito é uma forma de ver ou escrever por buracos, ou fendas, pois o mito não se explica, se confunde. Trabalho não com informação, mas com vazios, onde a poética apenas faz a sugestão de uma frase, de um duplo sentido. E a evasão da civilização no sertão , no interior não só do país, mas da opressão do sentido fixo-único. Cidades respondem rápido às suas demandas. Quando digo serra, ribeira, preciso de um tempo para preencher imageticamente as informações sobre o espaço do lugar. É necessário o recurso da imaginação, pois estamos poluídos de informações úteis das cidades.
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