O filósofo e jurista Silvio Almeida lançou, pelo selo Feminismos Plurais, o livro Racismo Estrutural, no qual reflete e demonstra o racismo atravessando todas as instituições do Brasil. É uma verdade indiscutível, basta olharmos para os encarcerados, os despejados pelos proprietários dos imóveis em plena pandemia, os famintos nas ruas de São Paulo, Rio de Janeiro ou Recife.
Precisamos pensar o país. Devemos acreditar na Revolução Brasileira como defende o intelectual Nildo Domingos Ouriques do Instituto de Estudos Latino-Americanos – IELA. Devemos incluir todos nesta possível “civilização mestiça e tropical”.
Leio a obra SOLO PARA VIALEJO da poeta Cida Pedrosa, lançada
pela Cepe Editora em 2019 (125 páginas) e penso nos dois teóricos da nossa realidade material concreta. Claro, não é um estudo sociológico.
Parece muito mais que isto. É um poema lírico, com traços épicos marcantes, que passeia pela nossa história com a sonoridade de um banjo, no final da tarde na beira do Capibaribe.
As imagens podem ser descritas como uma experiência de correntezas entre as águas da poesia e as sonoridades da música popular.
No meio do poema, uma voz ancestral mostrou-me a trajetória dos quilombos entre violões ciganos e jazz band. ABREU (2005, p. 158) afirma: “A identificação coletiva é sempre um processo de construção. Só pode ser entendida levando em conta os contextos históricos e políticos.
Tanto silêncio, quanto a reivindicação da cor mostram a memória do cativeiro”. Terreiros coloridos de celebração da africanidade, emergem do texto de Pedrosa:
[…]
as águas lamacentas falam
e rugem
e urram
e explodem
e rolam
como pedras
rollin’ stone
negro ser
negro ser
negro ser (CIDA PEDROSA, 2019, p. 66)
Com a leitura do trecho acima, entramos no tom do longo poema que canta a certeza do algodão, a infância e suas flutuações, o timbre da acauã e os corações pretos. O polissíndeto intensifica a ideia de pequenas cachoeiras a despencar nas nossas cabeças: “as águas lamacentas falam/ e rugem/ e urram/ e explodem/ e rolam”.
Índios, colonos, posseiros, escravos, mães de leite, trabalhadores em luta por direitos, assim como maestros ampliam o cenário do discurso de Pedrosa. Ela vai se enrolando em nós como cobra caninana, como cipó, como rememoração.
Lembranças de heroínas – na travessia da existência – apontam o tamanho das nossas grandezas:
a possibilidade
possi
bi
lidade
de cruzar a chapada em direção ao mar
ser negra
negro ser
ser negra
conheço a tez do sol e a flor-trabalho
geralda e lurdes geralda e lurdes
geralda e lurdes
:mulheres que usavam calças por baixo das saias
irmãs que colhiam colhiam. (CIDA PDROSA, 2019, p.79)
Mariana Ianelli expõe no penúltimo parágrafo da apresentação de SOLO PARA VIALEJO: “agora sim a poeta o toca, revolvendo tempos, trazendo à tona todos aqueles a quem ela e sua poesia se filiam, mestres, maestros, pais e mães de carne e alma que povoam sons da infância”. A repetição dos nomes das irmãs ratifica a ladainha interna do poema.
As figuras das mulheres: “que usavam calças por baixo das saias”.
Transformam as mulheres em sujeitos políticos coletivos capazes de alterar a rota do futuro.
Outro trecho importante nesta análise é:
a voz blues de seu bindô
negro
negro
negro
mesmo que as pessoas digam aquele era um
homem fulo
aquele fulo
fulo
pré pré pré
taxado de fulo
para encobrir sua negritude sua identidade
sua possibilidade de viver negramente
com a sua voz blues (CIDA PEDROSA, 2019, p. 84)
Seu Bindô é homem invisível, de tal forma, que é também o brasileiro na busca por sua voz blues. A autoidentificação como povo heterogêneo, no entanto, marcado por um longo processo de escravização provoca uma pororoca nas águas do poema. Os personagens se movimentam como se estivessem nas lentes de Glauber Rocha. Procuram apontar saídas para além do espírito colonizado e subdesenvolvido.
Cida Pedrosa teve um 2020 vitorioso. Foi eleita vereadora pelo PC do B, legislatura 2021-2024 na Casa de José Mariano. Ganhou o (Prêmio Jabuti/Livro do Ano) pela Câmara Brasileira do Livro.
No bolso da blusa de bordado, ela carrega uma foto do Cavaleiro da Esperança.
Paulo Rodrigues (Caxias, 1978), é graduado em Letras e Filosofia.
Especialista em Língua Portuguesa, professor de literatura, poeta, jornalista. É autor de vários livros, dentre eles, O Abrigo de Orfeu (Editora Penalux, 2017); Escombros de Ninguém (Editora Penalux, 2018).
Ganhou o prêmio Álvares de Azevedo da UBE/RJ em 2019, com o livro Uma Interpretação para São Gregório.
Venceu o prêmio Literatura e Fechadura de São Paulo em 2020, com o
livro Cinelândia.
É membro da Academia Poética Brasileira.
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