Lisboa imaginada (Os trópicos não têm suspense) | José Petrola

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Estou hoje perplexo como quem pensou e achou e esqueceu.
Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,
E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.
(Álvaro de Campos — Tabacaria)

 

Hoje sonhei que morava num quarto de pensão em Lisboa. Não era um quarto grande. Ficava num casarão antiquíssimo, mas muito bem reformado por dentro. Na Europa, é comum reformar as casas por dentro (no Rio de Janeiro, onde vivo quando acordado, o tabu de nunca se reformar casas é quase tão sério quanto o do incesto). Mas não é isso o que importa. Minha morada em Lisboa era entulhada de livros, espalhados no meu e nos demais quartos. Muitos, muitos livros. Talvez eu tivesse mais livros que o próprio dono da editora, e sei que eram meu ganha-pão, embora eu não faça ideia de quem era meu eu português.

Gosto de pensar que minha versão lusitana, vivida em sonhos, morava na Mouraria. Não sei qual era minha profissão portuguesa, não sei quem eram meus amigos portugueses, minha namorada portuguesa. Mas o sonho era tão detalhado que eu podia refazer todo o caminho de casa, subir a rua da Madalena e depois subir à direita e virar à esquerda. Eu podia ver o piso de madeira do meu quarto e as janelas no padrão europeu, com esquadrias térmicas. A escrivaninha devia ser da Ikea.

Já estive duas vezes em Lisboa e fiquei hospedado no mesmo casarão quase em frente à igreja de São Cristóvão. Alguma coisa me faz pensar que eu me sinto mais em casa lá do que no burburinho nervoso do Bairro Alto. Assim como no Rio de Janeiro consigo me sentir em casa no Largo do Machado, que já odiei e aprendi a amar, mas jamais me sentiria em casa em Copacabana ou Ipanema.

Talvez no sonho meu eu português morasse no Rato, como Fernando-várias-Pessoas, a escrever num quarto de pensão.

Ou talvez meu eu português morasse na Graça, a janela dava para uma parede, e andando poucos quarteirões poderia ver o sol se pondo sobre o Tejo, por detrás da ponte 25 de Abril, que avisto da Senhora do Monte.

Espero a insônia passar buscando rastros do sonho. Lembranças de viagem se misturam e ficam distantes no escuro. São três da madrugada.

(Para quem está acostumado às ruas brasileiras, Lisboa numa hora dessas parece estranhamente sombria. Uma cidade deserta, mas que de alguma forma me fascina, porque não há nada ali para ver. Caminha-se, procurando não se sabe o quê.
São ruas desertas, nada aberto, sem comércio noturno. Madri, num eterno horário de verão, não sabe mais o que é isto. Barcelona talvez ainda se lembre, quando os turistas permitirem.)

No meu sonho fazia frio. Na minha vida acordada, sinto falta do inverno. Não pela sensação do frio no rosto, mas porque o inverno é o prenúncio de uma primavera.
Nos países onde há estações do ano, uma estação é sempre o prenúncio da outra. Inverno significa mudança.

Os trópicos não têm suspense. Com isto, ficamos acostumados à permanência, aos climas imutáveis. Quando todos os dias são de sol e calor, nos assusta a ideia de que exista outro lugar onde um dia o tempo possa virar.

(Ando com preguiça das esquerdas. Prometeram-me um país grande, uma carreira e um emprego. No país grande nunca acreditei. Roubaram-me a carreira. E agora, depois de tudo, pode ser que o emprego também não fosse mais do que uma grande miragem. Queria ter a certeza de um fascista. Para um fascista, o mundo está dado. É o que é. Não sabemos o que queríamos. Mas queríamos algo diferente.)

São três da madrugada. Esta hora tem uma cor indefinida. Céu de madrugada de cidade grande, nem roxo, nem preto, nem cinza. Levemente iluminado pelas luzes da cidade. Uma cor sem nome, cor que queria ser outra, diferente de tudo que está aí.

Fazia tempo que eu não tinha insônia. Não me lembrava de como era, do quanto vinha carregada desse desejo de que tudo fosse diferente.

Às três da madrugada, o ar pode ser cavado com uma pá.

Há remédios para a situação, certamente. Gosto dos benzodiazepínicos, nos primeiros dias te deixam lento, sem memória, mas têm a vantagem de fazer parecer que nada importa. Não há nada para além. Dorme-se, e os sonhos, se há, não são lembrados.
Lisboa não importa mais. Se os benzodiazepínicos não forem suficientes, ainda há saída. Há os antidepressivos tricíclicos, os tetracíclicos, os inibidores da recaptação da serotonina, inibidores da recaptação da dopamina e até os inibidores da monoamina oxidase.

Mas não adianta. Lisboa ainda está lá. Não é a Lisboa real, capital de Portugal, no estuário do Tejo, latitude 38° N 9° O. É um lugar que é aqui mas é outro lugar.
Como os brasileiros às vezes esquecemos que estamos no estrangeiro em Portugal. Minha pensão em Lisboa poderia ser na Tijuca. Ou no Catete. O mistério é a vida do meu eu português, que poderia ser eu se eu tivesse coragem de outra vida. Que livros ele guardava, com que euros pagava sua pensão, com quem naquele país dividia suas angústias?

Às vezes penso que só estamos aqui, sufocados no calor, por falta de coragem. Enquanto o tempo não muda.

(A política ameaça mudar, mas continua igual, como as estações do ano nos trópicos. A classe média brasileira, pouco fluente em outros idiomas, debanda em peso para Portugal, indo se beneficiar da social-democracia que tanto odeia aqui sem nunca a ter conhecido. É tanta gente se mudando para Portugal que um dia, temo, os portugueses terão de se mudar para outro país. Os que aqui ficam, se são de esquerda, defendem quem fez aliança com a direita e roubou minha carreira e minha profissão.
Se são de direita ou apolíticos, já não têm vergonha de dizer que têm saudades da ditadura, aquela mesma que perseguiu meus pais.)

No dia seguinte, depois de eu tentar inutilmente dormir de novo e acordar tomando um bule inteiro de café, meu eu português me perseguirá o dia inteiro. Irei ao largo da Carioca e ele irá ao Rossio, irei à praça Tiradentes e ele atravessará a da Figueira, para sumir na estreita rua do Borratém, nas vielas que sobem para a Mouraria,
enquanto busco refúgio na claustrofobia da Senador Dantas, do Beco dos Poetas de Calçada.

(Minha pátria é a língua portuguesa, diria Pessoa; mas é ao falar Figueira e Borratém que se diferencia o brasileiro do português, e o brasileiro que perceber, no sentido de entender, a pronúncia destas ruas perceberá o que um português lhe disser.)

Meu eu português lê Álvaro de Campos, tentando entender o pensamento que pensou, achou e esqueceu. Meu eu português, como sonho, meu eu brasileiro, como realidade.

Meu eu brasileiro, acordado, tentando há meia hora pedir um café numa cafeteria onde não é amigo dos garçons, não sabe mais se fez a escolha certa ou se continua aqui por covardia.

Mas desdenha dos que fogem pra Portugal, sabendo que muitos voltarão. Porque partir, quando se parte de vez, já não é mais uma escolha. É um momento em que quem parte já não vê mais a possibilidade de não partir. Não é o meu caso, nem o desses tantos que acham que vão partir.

Meu eu brasileiro, acordado, esperando o calmante bater, ouve música lenta para dormir.

Um dia talvez eu descubra que meu duplo lusitano não mora em Portugal nem trabalha com livros. São tudo ilusões de uma insônia. Queria eu que Deus também fosse um delírio, para que eu pudesse talvez tomar uma droga e delirar sempre que quisesse ter uma esperança de justiça.

Agora não é o momento de mudar. Não é isto aqui o que quero. Mas sei que um dia poderei ter o que procuro, quando a neve cair sobre o Cristo Redentor.

São três da manhã, daqui a uma hora serão quatro. Hoje será um dia tão quente quanto ontem.

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This Article Has 1 Comment
  1. roberto monteiro Reply

    Cara, precisa conhecer melhor o teu país… no Sul temos as quatro estações… não tão frio quanto a Europa, mas temos temperaturas negativas, geada e nos lugares mais altos, com sorte, neve… aqui as folhas caem das árvores caducas, a primavera nos brinda com o colorido das flores e o verão… bem, o verão é subtropical de uma terra abençoada por quem???

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