FERNANDO ANDRADE – O social no seu livro tem uma acento forte, mas ele não se estabelece através de uma sátira social, fica mais para o lado do burlesco e o lúdico\cômico. Como foi o desenho da narrativa com os dois personagens tão interessantes e cativantes?
FRANKLIN CARVALHO – Eu tenho sempre em mente esse personagem caricato, herdeiro do “Arlequim, Servidor de Dois Patrões”, de Carlo Goldoni, da commedia dell’arte. Gosto muito dos personagens grotescos do teatro, de Gogol, e também nas farsas de Garcia Lorca achei alguma inspiração. São homens reduzidos a quase nada, à roupa do corpo, que estão prestes a negociar tudo, mas que também têm uma perfídia, uma astúcia. É preciso ter muito cuidado com os pactos que eles fazem, pois, ao tempo em que se mostram cordatos, têm como primeira e última opção a traição. No caso de Francisco dos Anjos e João de Isidoro, tentei equilibrar bem as participações de ambos, mas veja que eles duelam para assumir a direção da narrativa, e às vezes se misturam, se espelham. Mantenho esse desafio do duplo, do outro, aquele que quer tudo o que você tem, que quer os seus olhos, que quer ser você.
FERNANDO ANDRADE – Há um elemento repressor que parece se represar no fazendeiro, sua ações parecem reprimidas num controle do ego ou superego muito forte. Se, sim, se existe esta questão repressora, por onde ela aparece? E por que motivo?
FRANKLIN CARVALHO – O fazendeiro Francisco dos Anjos é uma contradição ambulante na perspectiva de seu empregado João de Isidoro. Porque Francisco tem tudo o que João supõe ser necessário para tornar um homem feliz, que são os recursos materiais. Mas Francisco parece sempre prestes a entrar em colapso, ou em pequenos colapsos, parece mesmo se dividir por não suportar o peso desse papel de dono, de regente de tudo. Veja que ele é dono até da dimensão religiosa, da capela, e dos mortos e vivos que “andam” pelas suas terras. Acaba que ele experimenta um eclipse quase que total, que só é resolvido por uma solução mágica. Eu costumo comparar Francisco dos Anjos a Paulo Honório, o dono da fazenda São Bernardo, de Graciliano Ramos, mas naquele momento em que Honório sente o quanto está sozinho, depois de ter se batido em muitos planos, em seus próprios ardis e muitas frustrações.
FERNANDO ANDRADE – A cultura do Nordeste aparece com sua força polimórfica, plural, e ela tem um efeito na própria linguagem da narrativa. Como foi tecer esta escrita muito matizada e colorida?
FRANKLIN CARVALHO – Apesar de a maior parte da história se passar na cidade do Penedo de Alagoas, muito dela foi concebido a partir do encontro com a cultura popular do Maranhão, que me inspirou ao ponto de procurar o que houvesse de registro de etnógrafos, de memorialistas. Eu lia com muita fome, mas sempre com a vontade de estar o mais próximo possível do olhar nativo. Na verdade, é por isso que eu gosto muito de livros memorialistas, das menores cidades, dos rincões mais afastados. Nas minhas leituras, não havia o propósito claro de pesquisar para escrever, naturalmente as ideias foram aparecendo, inclusive introduzir o mito do Jurupari no romance. Pois bem, creio que mostrar uma cultura é mostrar as pessoas vivendo dentro dela, crendo nela, comendo-a. Daí eu me pergunto como ser um sertanejo, um homem do Penedo ou de Alcântara, e o personagem João de Isidoro coloca estas questões, de forma explícita, muitas vezes: “Como vivem os nativos, como eu posso viver aqui?”
FERNANDO ANDRADE – As relações de trabalho entre patrões e empregados são feitas fora de molde da crítica social? Há um certo até carinho do João com o Francisco com a atrapalhação do patrão com as mulheres. O riso e a empatia parecem entrar no lugar do confronto entre quem manda e quem cumpre?
FRANKLIN CARVALHO – Um dos aspectos mais nefastos da realidade brasileira é o mascaramento dos problemas, das desigualdades, da opressão e dos preconceitos. Tanto que eu acredito que metade da solução de todo o nosso racismo, da exploração etc, é revelar que não somos uma democracia, nem racial, nem social, nem política, nem econômica. E no mascaramento, na ilusão de igualdade, vem essa falsa informalidade, o patrão que não paga salários justos nem respeita direitos mas arma um churrasco com cerveja no final do ano e ainda aparece para jogar bola com os explorados, se certificando de que o seu golpe funcionou. Isso está lá em Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda, essa informalidade de certa forma cretina, que faz o subordinado crer que faz parte da família do chefe, e que assim está garantido para a velhice. João de Isidoro acredita nisso também, mas é salvo por azares e sortes, e por ter uma alma velhaca.
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