FERNANDO ANDRADE: Numa prova de escola temos que ser objetivos nas respostas. Ao estudar a pedra, o sentido é defini-la. Nomeá-la. Mas na sua poesia, os nomes, os conceitos são mutáveis, híbridos, compostos. A sua poesia passa sobre a questão do rótulo dos gêneros, por que é segmentado, estanque. A poesia é um universo fora do mundo?
PATRÍCIA CLAUDINE HOFFMANN: Creio que a poesia não esteja no localizável. O lugar dela é sempre outro, porque é a captação do instante, você sabe. Dentro, fora, longe, perto, infinito, universo, multiverso, em nada ela está. Mas em tudo é. Linguagem em contínuo movimento.
Tudo muda de instantâneo em sua atmosfera. O tempo todo. E por vezes esse tempo nem existe para ela. Mesmo que já esteja em estado de palavra, cristalizada, ela se altera em sua irradiação, porque o olhar leitor, observador, vidente, interage com a substância que a compõe. Assim como atuam sobre a escrita poética o meio, as estações, a respiração, os sons… Então o que ela nomeia ou deixa de nomear, também muda. De repente é preciso desapegar do lugar da poesia, para encontrá-lo.
Desapegar de nomeá-la. Deixá-la ser, sendo com ela, é o desafio. Outro desafio é o de procurar, ao menos procurar, não perder de vista a profundidade. “Só quero que o meu olhar a veja/quero vê-la a escorrer por entre uma possibilidade de pensamento e um toque ascensional”, nos sopra a poeta portuguesa Sophia de Mello Breyner Andresen.
FERNANDO ANDRADE: O segredo da fé é manter o discurso único como uma oração com Deus. Mas lendo seu livro, eu percebo uma certa litania por uma conversa com o sagrado, que não pede um discurso único. Pois, como a água, que está sempre em movimento, ela é uma molécula de oxigênio, e duas de hidrogênio. É uma composição híbrida. Como escrever mantendo, certa liturgia, mas sem cair no dogma de alguma ideia?
PATRÍCIA CLAUDINE HOFFMANN: Os segredos da fé também se transformam, no feito poético. A palavra pede licença para inundar-se de sensações e de uma fé não linear quando, por exemplo, deseja dar voz a um menino afogado, que em plena migração, é trazido pela maré, à beira do mar Egeu: “Movimento de música celta/Involuntária/ Aquática. Cética./Ática./O mar Egeu não me elegeu guarda-vidas./ Eu, que navegava em liturgia e sem fronteiras, que tinha balsas!/ Que não acreditava no passo em falso dessas ondas…/ E as chamava pelo meu nome.” (p. 104).
Para o filósofo antigo, Mallebranchea, ‘a atenção é a oração natural da alma”. O poeta concede atenção aos fatos visíveis e invisíveis, para que o poema possa intervir de intensidades diante do mundo. Exercita transcendê-lo. Averigua o corpo das palavras em salmos. A escrita poética se molda feito éter, para trazer à superfície várias vozes numa mistura de tempos e espaços, em busca de alguma atemporalidade possível, na qual possa repousar o poema, seja pelo clamor dessas vozes, as quais, mesmo dotadas de certa instabilidade, formam um uníssono, que se funde entre passado, presente e futuro, em múltiplos cenários… ou seja na simples memória da criança a tomar banho numa bacia de alumínio, quando as tsunamis ali com ela também eram crianças, ambas em miniatura… ou ainda, no ‘holocausto’ das tainhas que se debatem sobre tarrafas quilométricas, com suas “iscas mordidas de sim”. – E elas não tinham fé?, perguntaria a metáfora. As memórias se encontram e de repente se reconhecem na simbologia das águas, numa espécie de litania, sim, (in)consciente, contínua, individual e coletiva. Na conjugação dos mistérios sustentados ou numa tentativa de alquimia semântica, para o dialeto dos afetos, entre metáforas e cânforas.
O poema pode transtornar a fé pela própria fé para que nasçam outras. Pois, como dizia Maurice Blanchot: “escrever é começar por querer destruir o templo antes de o edificar”.
FERNANDO ANDRADE: Há uma musicalidade nos seus poemas, que parecem muito circulares em torno de uma junção temática do universo material e visível. Transformar é mudar de forma, e sair do seu núcleo. Como a música te faz criar esta sintonia entre o real e as ideias sensoriais?
PATRÍCIA CLAUDINE HOFFMANN: “A poesia é uma música ajudada” escreve Fernando Pessoa, entre tantos de seus versos singulares. Talvez a música ajude o poema a transcender. A sonhar. Imersa em imagens, pode ainda contribuir para que os sentidos gerados pelo poema se tornem imantados. O que percebo em meu processo de escrita é o acoplar meio que natural, dessa sonoridade. Ela surge na escuta receptiva da escrita, onde as palavras se procuram de ritmos e vão sondando umas às outras. Há sempre um som de fundo, um encadeamento como ondas de mar, enfim, a natureza também se converte em música se esta auxilia de dom o ato criativo. Ao poeta cabe tentar a afinação dos vocábulos, com a alma nos ouvidos. “Porque refiz a música coagulada de tentar./No alagar dos olhos/entremeio relevos de flores./ Tateio-as de pérolas picadas./Um pouco líricas./ Abelhas./ Libélulas./Alvéolo de lágrimas posteriores/ de algum rio.” (p.32)
FERNANDO ANDRADE: Criar conceitos é área da filosofia. Mas aqui no seu livro você não se filia à uma poética conceitual, parece mais uma expressividade pictórica, onde imagens combinam com palavras para ter uma relação estética forte como o sagrado. Fale um pouco disso.
PATRÍCIA CLAUDINE HOFFMANN: Penso que no poema a estética só serve se for para amplificar a emissão dos sentidos. Se for para conduzir a palavra ao reino das abstrações, coligado a alguma reflexão. Em “Oratórios d’ Água” (Ed. Patuá), a linguagem reivindicou, a si mesma, se permitir ser ocupada por um tom mais longínquo, feito um sussurro do deserto ou um vapor de escrituras que “se estende sobre o instante itinerante dos seres/ Das sereias./ Antes do raro das searas /Antes dos Saaras que habitam os ausentes” (p.67), para que pudesse se pronunciar melhor junto à unidade temática proposta. A poesia e o sagrado têm fundamentos parecidos, onde a ausência se torna elemento presente.
Cada livro pede uma pronúncia. No caso do Oratórios, os poemas foram almejando essa dicção de rumor com a parte mais divina das coisas, da vida mesmo e de modo espontâneo ou intuitivo.
Nessa energia própria, os poemas acontecem como possibilidade de redimensionar os ambientes, no mundo e na linguagem, “enquanto saem para rezar na correnteza em flor/ e amanhecem”(p. 121), portando palavras para a redenção de si mesmos: “nada do que não pudéssemos nos salvar”. (p. 108)
Q riqueza de entrevista‼️