O enganador | Adriano B. Espíndola Santos

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Adriano B. Espíndola Santos é natural de Fortaleza, Ceará. Em 2018 lançou seu primeiro livro, o romance “Flor no caos”, pela Desconcertos Editora; e em 2020 os livros de contos, “Contículos de dores refratárias” e “o ano em que tudo começou”, ambos pela Editora Penalux. Colabora mensalmente com a Revista Samizdat. Tem textos publicados em revistas literárias nacionais e internacionais. É advogado civilista-humanista, desejoso de conseguir evoluir – sempre. Mestre em Direito. Especialista em Escrita Literária. Membro do Coletivo de Escritores Delirantes. É dor e amor; e o que puder ser para se sentir vivo: o coração inquieto. instagram.com/adrianobespindolasantos/  facebook.com/adrianobespindolasantos

 

 

Evandro tinha o corpo encruado para as fraquezas da perdição. Era danado para se meter em laços daninhos, clandestino, em modos de conseguir escapar a uma reprimenda maior; sabia que podia se complicar. Ousava mais do que olhares; carregava a compleição toda para afoguear as novinhas. Não se dava ao desfrute por mera lascívia enjambrada. Como se diz, acertava a vítima com os dois pés, num bote só, na hora certa.
Cabra velho, descurava no trabalho de servidor do Estado e ficava em prontidão para as donzelas que atravessassem o seu caminho. Por isso, passava mais tempo na copa e no corredor que em sua mesa. Atendia, com desdém, três ou quatro penitentes que suplicavam o seu amparo, para causas de saúde; para que liberasse o benefício que não podia demorar; muitos em caso de vida ou morte, por inaptidão às propensões do corpo.
A resposta pronta, no mais das vezes, era que o processo estava dentro de um bolo armazenado no birô do chefe. “O senhor deve esperar a fila. Tem gente com todo tipo de doença grave. Ou pensa que a sua é mais importante que a dos outros?”. Nem sequer tremia com a mentira, acostumado que era na prática da enganação. Na mesa do chefe, que também, para a sua glória, era ocupado em diligências, quedava, sim, uma pilha de documentos, mas que iriam para o arquivo; peso morto, nada tinham a ver com processos de assistidos. Evandro alimentava o sistema para não levantar conjecturas.
Colocava aí alguma informação inventada: “Encaminhado”; “Em análise”; “Documento pendente, solicitado ao beneficiário”. Até mesmo com os colegas trocava palavras poucas, insignificantes, para dar conta de que estava ali, vivo, rebolando-se de canto a outro, como uma formiga levada pela vassoura irrequieta de dona Zulmira. A única que atendia aos seus pedidos, com certa agilidade e delicadeza, era dona Zulmira; muito porque recebera, numa oportunidade longínqua, um benefício para ficar uns dias em casa, virando-se com um mirrado auxílio do governo – coitada, quase sempre acometida por hérnias de disco. O processo, à época, calhou de cair nas mãos do Evandro – segundo ele afirmara; mas o funcionário podia puxar para si alguma demanda, como fizera nesta oportunidade –, pelo que o perdulário de prazeres mórbidos realizou e deu andamento ao feito, com o intuito de se ver enfiado na leveza macia de Adalgisa, a filha de Zulmira, uma mocinha prestes a enfrentar o vestibular. Adalgisa vinha nos fins de tarde à repartição para acompanhar a mãe na saída do trabalho. Coincidiam o término das aulas de Adalgisa e o fim do expediente da mãe. Como Adalgisa chegava meia hora antes, dava jeito ao Evandro urubuzar uns tempos em táticas de professor, ensinando baboseiras que nada tinham a ver com as matérias essenciais. Falava de ovnis a acontecimentos ligados ao setor financeiro, mais especificamente das bolsas de valores.
Evandro intuía que, dissertando assim, loquaz e com voz de conhecedor, angariaria o encanto da mocinha perdida. De fato, Adalgisa se abafava com as informações; olhava-o com dúvida, tentando entender os contornos enrolados e a quê tudo isso lhe prestaria.
Era um desaforo, que afrontava os colegas, as demoras de Evandro. Quando ele dava um sumiço, não havia urgência que mudasse o fado. Era preciso que alguém de bom coração – notadamente a Tércia, uma funcionária com vinte e tantos anos de casa – amparasse o vácuo da ausência de um suposto trabalhador. Certo era que a repartição estava carente de servidores dispostos e em número suficiente para atender às demandas. Evandro, além do mais, não se preocupava em despender energia e agrados.
Para a maioria, era um vagabundo; ignorado. Para Tércia, não. Solteirona, via alguma graça no rapaz boa pinta; solteiro também, sonhava que poderia daí surgir um belo par.
Evandro, entendido dos quereres dela e certo de que contaria sempre com a sua inestimável ajuda – sendo ela uma funcionária exemplar – e de que lhe defenderia em algum apuro, largava preciosos bombons em sua mesa, em artimanha premeditada de carinho pérfido. A tática surtira efeito. Tércia ia se afeiçoando à figura gentil, que somente ela percebia. Aos colegas de trabalho, com os quais não queria se indispor, pedia que deixassem de mão o colega “excêntrico”; que devia ter passado por poucas e boas na vida; que ele não era má pessoa; que era revestido de uma luz sem igual, aos que se dispusessem a ver. “Assim você vai cegar, querida Tércia!”, rebatia Tomás, abusado do ser que atravancava a linha de produção, com perturbações que afetavam a todos além da cota do admissível. Tomás, também velho de casa, pregava a expulsão do colega, com a abertura de um processo administrativo, por abandono do cargo, e achava que era preciso ocupar o lugar quem estivesse disposto a trabalhar. E o pior, havia a suspeita de um concurso arranjado para que ele entrasse num cargo vacante, às pressas, realizado na surdina. Mas isso levaria muitas linhas para ser desvendado, portanto, não cabe nesta prosa. Evandro achava-se amparado pela estabilidade constitucional, mas, ainda assim, por via das dúvidas, lhe interessava a parceria, ou a amizade colorida de Tércia, esta recém-empossada no cargo de subchefia. Numa manhã de quinta-feira, nublada, Zulmira faltara ao serviço e não dera notícia. Todos reclamavam o preparo do café, e ninguém punha a mão na massa. Evandro queria saber do estado de saúde de Zulmira, não por outra coisa, mas para não perder o contato com ela e, por conseguinte, com a sua filha. Ligara insistentemente para o celular da ausente, e nada. Conseguira facilmente com a subchefe um outro número. Atendera Adalgisa. Bom, na verdade, despencava em lágrimas a pobre da Adalgisa. Não se podia entender palavra do que dizia, a não ser presumir que a mãe estava mal. Evandro não sabia administrar a situação e respondera, sem pergunta qualquer, que iria ao seu encontro; que precisava ajudá-la de alguma maneira. Adalgisa, menos afogueada, pingava palavras como: “não”, “não carece”. Evandro, mesmo assim, tendo capturado o endereço das mãos da dadivosa Tércia, saiu da repartição com o destino de preparar o bote perfeito, longe das vistas dos abutres do trabalho e da mãe zelosa, que, doente, não tomaria ciência do sucedido.
Tércia quis correr em seu auxílio, pois vira a sua agitação. Mas se conteve, por um tempo, para não parecer avançada demais nas intenções. Pensou, pensou, e logo colheu as chaves do carro, despediu-se dos colegas, alegando que iria resolver um problema de família – para ela, uma leve mentira, já que se sentia parte de uma família futura –, e se encaminhou, vagarosa, também para a casa de Zulmira. Atravessara a cidade, como doze quilômetros, e sentia o quão sufocante era a vida de Zulmira. Teve pena e chorou.
Ajuizou que, no retorno da amiga servente, a levaria, se possível, pelo menos uma vez na semana para casa, porque, de fato, não custava nada a uma servidora enobrecida de caridades. Entrou em vielas apertadas e tremeu de medo. Fazia anos que não era guiada exclusivamente pela emoção, por terrenos perigosos. Avistou o carro do colega e experimentou um ligeiro alívio. Evandro teria chegado pelo menos uma hora antes.
Bateu repetidas vezes à porta. Resolveu, então, esperar num estabelecimento ao lado, um boteco com cara de poucos amigos, para não ficar no meio da rua e ser fustigada por algum bandido. Quando botou o pé no batente e levantou o rosto, viu Evandro de costas, beijando a filha de Zulmira. Adalgisa também a percebeu e tentou se despregar das garras de Evandro, dando, por fim, um grave empurrão nele. Evandro caiu estatelado no chão, debatendo-se, confuso. Tércia sofria dos nervos e, com esse baque, permaneceu congelada na porta do boteco. Adalgisa não se importou com Evandro e correu para acudir a patroa da mãe. “A senhora precisa de alguma coisa? Eu posso pedir… pedir uma água gelada ao seu Zé… Seu Zé, traz uma água aqui para essa senhora. Se sente, por favor, dona Tércia”. Tércia, no entanto, não ouvia nada e coçava, com tremendo alvoroço, os braços e o pescoço. Evandro sumiu pela porta dos fundos. O pânico se expressara na face de Tércia, de fazer medo; que não esperou a água e saiu nervosa catando os passos. Adalgisa não quis chegar perto, com receio de ser atingida pela mulher que se mostrava felina e braba. Antes de guiar, Tércia ligou para o chefe e pediu que fizessem uma investigação minuciosa nos trabalhos do funcionário Evandro.
Que havia indícios fortes de desmandos e falcatruas. Dentro de um mês, a investigação avançara e o processo interno corria em revelia, pois que Evandro pedira licença para tratar de um problema de saúde e se desligara do mundo. Na Procuradoria do Estado, com seis meses deram o caso como encerrado e o encaminharam para a esfera criminal.

Evandro era somente um vulto nocivo que passara pela repartição. Aplaudiam e se agradavam mais de Tércia, a agente eficaz, condecorada com louvor. Era considerada, a partir de então, exemplo de trabalho e de desprendimento na administração pública, contra o mal alastrado da corrupção.

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