Na era “pós-tudo”, a reinvenção dos sentidos culturais | por Valmir de Souza

Valmir de Souza ensaísta - Na era “pós-tudo”, a reinvenção dos sentidos culturais | por Valmir de Souza

fotografia: KYamada

Valmir de Souza. Pós-doutor em políticas públicas de cultura (EACH/USP), doutor em teoria literária (USP), professor, ensaísta, pesquisador de políticas culturais, associado ao Sinpro-Guarulhos e ao Instituto Pólis, autor do livro Cultura e literatura: diálogos e de vários artigos em revistas sobre questões culturais e literárias.

 

 

 

O cenário contemporâneo de um mundo em mutação e as formas insurgentes de se fazer cultura e literatura abrem possibilidades de novas práticas artístico-literárias.

O mundo de ponta cabeça. Em que era estamos? Era da pós-verdade em que “conhecereis a pós-verdade e a pós-verdade vos libertará”, com a disseminação da desinformação, em uma era desmemoriada, em que se convive com as catástrofes políticas, ambientais e mentais. Era de fascismo do cotidiano, em metástase, que se alastra e entra pelos corpos e mentes, e reivindica homenagens a ditaduras antigas e atuais. Uma era com a lógica burocrática até as tampas. Vivemos em um momento em que a extrema direita delirante, apoiada num autonomeado filósofo e guru, assume a direção de um país, jogando com as armas sujas da antipolítica para desestabilizar ideias e projetos. A racionalidade vai pro espaço diante das trapalhadas de um grupo desequilibrado. Claro que esta onda emergente da direita reacionária não é somente nacional, ela é global, e em processo de reprodução virulenta.

Revisionismo sobre verdades mais que provadas acerca da ditadura no Brasil, Negacionismo quanto à mudança climática apoiado no crescimento econômico com devastação da natureza, de territórios e de vidas humanas e de outras espécies. A crença de que de repente a terra sofreu uma metamorfose e voltou a ser plana (de novo!) vira um hit mundial. Tentativa de inserir o criacionismo na educação por parte de fundamentalistas. A busca por um Estado Nação esvaziado. Tentativa de revirar noções básicas da ciência e do senso comum. A incidência tecnológica, cujo projeto high tech diz; “Nós também vamos, mas rumo a um futuro tecnófilo extremo.” (Bruno Latour, El país). Mas o que essa paisagem apocalíptica tem a ver com as culturas e as artes recentes? É nesse momento de desestruturação que a cultura apresenta também sintomas de fragmentação, ao mesmo tempo que práticas socioculturais elaboram novos sentidos as artes e à poesia.

A crise da cultura e a cena artístico-literária. A palavra cultura talvez tenha chegado ao ápice, e agora passa por uma crise. Assim também seus derivados e adjetivos: cultura erudita/letrada, cultura popular, estudos culturais… Para alguns, ela soa um tanto vazia. Talvez por ser excessivamente usada, ela ficou desgastada. Do final dos anos 1990 e início dos anos 2000, foi uma das palavras mais usadas tanto na sociedade como nos governos. Ela agora precisa de uma renovação, de novos ares, com sentidos que se abrem para o futuro. E é nesse cenário que praticantes das diversas artes refazem seu lugar de fala e praticam sua voz em lugares públicos.

As culturas, as artes e as literaturas passam hoje por transformações e crises que atingem áreas de A a Z. A produção cultural, simbólica e cognitiva sofre das ansiedades presentes na sociedade atual.

Os artistas, escritores/as e coletivos periféricos formados por jovens “de todas as idades” inventam novas práticas ao mesmo tempo que reinventam as práticas dominantes de fazer cultura, passando ao largo das formas canônicas e se insurgem contra as “igrejas” culturais. As artes e as literaturas nas grandes cidades desbordam dos limites impostos pelas artes tradicionais – cristalizadas no passado ou midiatizadas no presente. As culturas das “margens” avançam criando novas rupturas nas produções literárias e artísticas, num movimento dialético cultural.

Os deslimites das artes periféricas transbordam pelos vários territórios da cidade, com um dinamismo e vitalidade potentes. Essa busca por outras possibilidades abre novas perspectivas para movimentos, grupos e coletivos. As literaturas e as artes são experimentadas como prática radical da liberdade, e não se enquadram em padrões pré-fixados e modos obsoletos de fazer cultura.

Essas artes e literaturas buscam ser livres de qualquer patrulha ideológica ou moral, elas reivindicam existências fora das formas institucionalizadas de fazer cultura. Lutam por práticas de liberdade fora do raio de influência de grupos dominantes e se apresentam com fisionomia própria. Pode-se dizer que esses/as jovens artivistas usam seus corpos como mídias “imediatas”, sem a interferência das grandes mídias, e praticam poéticas da convivência e da “liberdade livre”.

A literatura de resistência ao mal-estar da cultura. No cenário atual, os movimentos de oposição cultural e da literatura aparentemente estão desencantados. Nada mais inexato do que pensarmos em uma “era do desencanto”. Esta é mais uma das ilusões da nossa modernização cultural tardia. A ‘ebulição clandestina’, porém não para. Não só os “estabelecidos” que publicam suas obras e apresentam sua arte. Os outsiders (“marginais”) também estão “na atividade”. Contra o discurso conformista na arte, temos outros atores sociais que se fazem presentes em outros registros. Quem são esses atores? São movimentos de hip hop, fanzine, saraus, teatro popular, literatura de cordel romances e poesias periféricas, literatura de testemunho, “terrorismo literário” (Ferréz) e toda uma gama de manifestação cultural que resiste aos modos governados pela economia-mundo. São trabalhadores e trabalhadoras da cultura lutando pela sobrevivência e pela dignidade de não ser chamado de marginal.

A cultura se manifesta de outras formas hoje. A reinvenção do cotidiano nas periferias passa pelo trabalho das artes. A realidade cruel da vida urbana é manifestada e registrada pela literatura de autores não “anônimos” que fazem questão de não se calar diante da mesmice de uma sociedade conformista cultural e economicamente.

 

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This Article Has 2 Comments
  1. Joseli Magalhães Perezine Reply

    Como trabalhadora nas periferias vivo em meio a essa ebulição criadora/criativa de crianças, jovens e adultos. Certamente, a periferia é o centro revolucionário das artes e nesse deslocamento encontra outras formas de sobreviver ao caos.

  2. JOHNNY Reply

    Parabéns, professor Valmir Souza. Este artigo é excelente. A suas argumentações estão todas baseadas no cotidiano que engole nosso dia-dia.

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