Fernando Andrade entrevista o escritor Guilherme Preger

Guilherme Preger Fabulas para Ciências - Fernando Andrade entrevista o escritor Guilherme Preger

 

 

 

 

FERNANDO ANDRADE:  Quais seriam semelhanças e diferenças entre as duas culturas: a do discurso científico e da narrativa de ficção.

GUILHERME PREGER: O problema das Duas Culturas é um tópico abordado pelo físico e romancista britânico C.P.
Snow numa famosa palestra de 1959. Em sua abordagem original, as Duas Culturas eram a da ciência e da literatura ficcional. Mais tarde, o conceito de Duas Culturas foi ampliado arbitrariamente para designar a diferença entre ciências exatas (ou naturais) e ciências humanas. Em meu livro, abordo cada cultura como um modelo discursivo diferente e autônomo. O discurso científico é o que denominei de “analítico-referencial” e foi estabelecido sobretudo no século XVII, pela assim chamada “Revolução Copernicana”, por nomes como Galileu, Francis Bacon, Descartes e Isaac Newton. É um discurso marcado pelo apagamento da subjetividade, pela referencialidade objetiva e pela univocidade. Ele apaga os rastros do enunciador, estabelece uma relação unilateral (1:1) com a natureza e bloqueia outras formas discursivas, sobretudo narrativas. Já o discurso literário se tornou a sede da subjetividade e da imaginação e se caracteriza sobretudo pelo plurilinguismo, dialogismo e pela plurivocidade. Na minha obra, estudo um tipo específico de discurso literário, o da fabulação especulativa, modo ficcional que abrange as fábulas didáticas e religiosas, as narrativas utópicas e fantásticas, e a ficção científica.

A semelhança principal entre os dois discursos é a primazia dada à função cognitiva. Ambos os discursos pretendem descrever e entender não só o mundo, mas os modos de se apreendê-lo em suas diversas perspectivas. São discursos sobre o conhecimento. Daí vem a importância que dou, em meu estudo, à questão da narrativa. A narrativa é o discurso mais antigo, sendo fundamental para o desenvolvimento cognitivo da espécie Sapiens. Narrar significa etimologicamente transmitir um conhecimento a quem não o sabe. Em inglês, por exemplo, o verbo to know é cognato com to narrate. Conhecer vem da palavra indo-europeia gnarus, que na língua portuguesa nos deu o conceito de gnose. Quem narra conta uma história desconhecida para quem ouve; por exemplo, como foi o dia da caça, numa malta de humanos sapiens ancestrais reunidos em torno do fogo.

Meu ponto não é questionar a validade do discurso analítico-referencial científico. Pelo contrário, é um discurso tremendamente eficaz em seu próprio domínio. No entanto, ele não está livre de problemas epistemológicos que são insolúveis dentro de seu paradigma. Em primeiro lugar, ele precisa lidar com o paradoxo de se basear em observações ao mesmo tempo em que apaga os traços do observador. Isso funcionou até o fim do século XIX, auge da ciência positivista, que justamente era radicada na centralidade das observações. Mas a física quântica, por exemplo, teve que lidar com a interferência do observador nos objetos experimentais, o que gera uma indeterminação. A partir daí, se concluiu a impossibilidade de isolar o experimento do observador, pois toda observação interfere no objeto estudado. Em segundo lugar, a referencialidade unilateral do discurso científico gera uma confusão entre os domínios do mapa e do território, que deveriam se manter separados por uma questão de sanidade, conforme afirmou o teórico Alfred Korzbinsky.
Isso gera o privilégio epistêmico de que o discurso científico seria a única representação realmente adequada da natureza. Finalmente, o monolinguismo do discurso científico impede o confronto e o diálogo com outros saberes, constituídos sobre o modo discursivo narrativo, empobrecendo a própria visão de mundo das ciências naturais e as tornando surdas aos apelos das comunidades afetadas por suas aplicações. Neste último caso, é preciso defender que os discursos de outros saberes têm sua própria racionalidade e seus critérios autônomos de validação.

Por sua vez, o discurso literário é aquele que se autoriza a si mesmo, constituindo imanentemente as competências do narrador e de seus receptores, ao mesmo tempo que explicita as marcas ficcionais em sua construção, o que esclarece o entrelaçamento entre o domínio do mapa e o do território. O discurso literário mostra que dentro de um mapa há outros mapas, dentro de uma narrativa outras narrativas, e dentro do tempo, outras temporalidades, algo que a Teoria da Relatividade einsteiniana formulou para o domínio da explicação científica natural apenas no início do séc. XX e que era totalmente inconcebível para o paradigma clássico anterior.

FERNANDO ANDRADE: A fábula seria uma pré- história da narrativa de ficção? Onde o mito se transforma  e aglutina na informação sobre a realidade e começa a  investigar sobre o trabalho de hipóteses de alguma experiência científica, em estudo?

GUILHERME PREGER: Toda narrativa tem elementos ficcionais e não ficcionais. A ficção é o dispositivo discursivo do outro. A fábula, cujo termo é sinônimo de “fala”, é a narrativa mais antiga, aquela cujo meio era originalmente oral. Sua função era revelar o que não se sabe, fazer a transição do desconhecido para o conhecido. Para Italo Calvino, a fábula precede o mito. Os mitos basicamente são fábulas autorizadas e o dispositivo mítico é aquele que seleciona quais são as fábulas que devem circular numa comunidade e as que não devem, aquilo que deve ser dito e o que não pode ser dito, isto é, o tabu. O “outro” veiculado pela narrativa, portanto, é exatamente o interdito, o que não pode ser dito.
Para Calvino, há uma disputa entre a fábula e o mito. A fábula trabalha para expandir as fronteiras míticas, na fronteira entre o dito e o não dito. A fábula é, segundo Calvino, o “pulmão do mito”. Já o mito age de forma centrípeta, para aglutinar e centralizar os discursos permitidos numa dada comunidade, enquanto aquilo que é silenciado permanece como um “inconsciente coletivo”. A função do mito sempre foi a de resguardar o poder das palavras, consideradas desde sempre mágicas, capazes de mover e dar vida às coisas inanimadas. Mais tarde, a partir de Esopo e outros, a fábula foi entendida como um discurso que continha um elemento de sabedoria, didático, uma lição de vida, pragmática e orientativa. A fábula se tornou o discurso narrativo com função eminentemente epistemológica. Portanto, na ideia de fabulação especulativa, há uma exploração dessa função cognitiva da narrativa, encarnada no discurso fabular.

O discurso científico moderno se construiu numa guerra contra o mito, apresentando-se como o portador único e legítimo da razão. Francis Bacon discursou contra os “ídolos” ilusórios das falsas crenças. Portanto, ao mito foi atribuído a condição de irracional. Isso é tão errado quanto defender que o inconsciente psíquico é portador de irracionalidade. Por outro lado, o próprio discurso científico também criou suas mitologias. O conceito que mais se aproxima da função autorizativa do mito é o que o filósofo da ciência Thomas Kuhn chamou de “paradigma”.
Paradigma é o conjunto das crenças de fundo, compartilhado por uma comunidade de pesquisadores. Kuhn observou que a ciência normal é aquela que tende a reforçar o paradigma, assim como o ritual reforçava o mito. O paradigma, portanto, trabalha, como o mito, na função seletora para o que pode e deve ser estudado, pesquisado e compreendido. O que não está previsto no paradigma acaba sendo esquecido, negligenciado ou desconsiderado, até que surge uma “anomalia”. Anomalias são os resultados inesperados dos experimentos dentro de um determinado paradigma. Quando acontece uma anomalia, os pesquisadores daquele campo tentam “normalizar” o resultado, incorporá-lo em teorias existentes, fazendo algumas mudanças no aparato conceitual.
Mas muitas vezes, esse movimento de correção fracassa, pois não consegue explicar a anomalia, ou torna-se desnecessariamente complexo e inconsistente. Neste caso, é o próprio paradigma que precisa ser desafiado. Mas tal como os mitos, os paradigmas são conservadores, produzem uma inércia e resistem às mudanças. O que mostro em meu estudo é como, neste caso, o discurso analítico-referencial torna-se impotente para desafiar o paradigma, pois ele não consegue “se colocar de fora” para criticá-lo. É nesse momento que a fabulação especulativa pode ser um instrumento de pensamento poderoso, pois permite uma atitude de “suspensão” perante os paradigmas, apresentando diferentes perspectivas.

FERNANDO ANDRADE:  Lem usou tanto um saber científico quanto um conhecimento da área de humanas.
Como a fábula no seu trabalho ajuda a tecer as camadas de texto, onde o humano parece vir de uma investigação das próprias sondas internas do homem, da natureza?

GUILHERME PREGER: O polonês Stanislaw Lem é um dos mais conhecidos escritores do gênero de ficção científica do século XX. Mas ele também serve de modelo para o entendimento do gênero de fabulação especulativa, um modo discursivo que se utiliza de elementos dos discursos literário e científico. A fabulação especulativa desenvolve ficcionalmente os cenários de outros mundos possíveis.Tanto os personagens como os leitores se deparam com o “novum”, um conceito do crítico Darko Suvin, sobre o encontro com mundos desconhecidos. Muitos dos romances de Stanislaw Lem são protagonizados por cientistas. Seus temas principais são os paradoxos e as aporias do discurso científico. Em sua obra prima, Solaris, o desafio posto é entender e descrever cientificamente o fenômeno do “totalmente Outro”. Só podemos entender o desconhecido pelo já conhecido. A criatura Solaris é um fenômeno não antropomorfo. Podemos compreender que é um tipo de oceano, mas não podemos entender como um oceano pode pensar e se comunicar. O dilema de Kelvin, o psicólogo narrador, é o mesmo dos leitores do romance: o que é Solaris? Como descrevê-lo? Como se comunicar com ele? O que ele afinal deseja dos astronautas da estação espacial? A criatura Solaris se comunica com os astronautas através da encarnação material de suas memórias mais recônditas. Assim, Kelvin se depara na estação com a visita insólita de sua falecida esposa, cuja morte lhe foi traumática. O diálogo entre Solaris e os cientistas só pode ocorrer através das imagens que lhes são conhecidas e mais caras. Stanislaw nos diz que vamos ao espaço sideral, em busca de outros planetas, carregando espelhos e encontrando as projeções de nossas próprias imagens.
Descrevemos o desconhecido através de modelos conhecidos. Os mapas que a ciência constrói recobrem o território do universo com imagens antropológicas. Assim, embora tenhamos superado o geocentrismo, continuamos considerando o humano como a medida de todas as coisas, como se o universo fosse criado à nossa semelhança. Ao mesmo tempo, Stanislaw Lem nos mostra em Solaris que a tecnologia nos permitirá viajar para as mais remotas distâncias, mas levaremos conosco os problemas e as angústias mais próximas e não resolvidas de nossa existência terrena e mundana.

FERNANDO ANDRADE: A imaginação em Calvino não é apenas visiva. Ela trabalha junto a uma especulação sobre o cosmos, a astronomia que reflete no espírito tanto aventuresco do homem como de suas idiossincrasias mais bem humoradas. Fale disso.

GUILHERME PREGER: O escritor Italo Calvino foi um dos mais interessados na relação entre ciência e literatura, o problema das Duas Culturas. Tendo começado nos anos 50 do século XX como pesquisador do folclore oral italiano, escreveu nessa década duas obras com fábulas baseadas em sua pesquisa. A partir dos anos 60, com sua participação no grupo OULIPO, que se dedicava a experiências literárias formais com métodos matemáticos, Calvino defendia que o discurso científico, com seu rigor e parcimônia, poderia ser um modelo para reanimar a experiência literária de vanguarda.
Chegou mesmo a defender, num ensaio famoso, a possibilidade de construção de uma máquina cibernética literária que poderia compor textos literários clássicos originais, substituindo escritores tradicionais. Neste caso, sua ideia foi premonitória do software GPT3, recentemente desenvolvido, que efetivamente produz textos literários perfeitamente verossímeis e indistinguíveis de textos produzidos por humanos. Em sua obra ficcional As Cosmicômicas (1964), Italo Calvino abordou uma questão fundamental sobre a elaboração do discurso científico. O método científico começa com uma hipótese. A seguir, a hipótese é articulada com uma teoria já formulada, isto é, ela é “sistematizada”. A partir daí é possível construir experimentos para “verificar” a hipótese. Na descrição deste método, no entanto, não está claro como é que surgem as hipóteses. De fato, a produção da hipótese é o momento “poético”, criativo da ciência, pois não há método para formulá-la. Uma das estratégias é a construção de “experimentos mentais”, que são cenários abstratos onde hipóteses, a princípio ainda não testadas, podem ser “verificadas” imaginariamente em sua consistência lógica. Os experimentos mentais, fartamente utilizados no domínio científico, são construções limítrofes com cenários ficcionais estrito senso. As Cosmicômicas é uma coleção de contos que podem ser considerados verdadeiros “experimentos mentais” de caráter literário. Todas as histórias começam com a descrição de uma hipótese, que efetivamente foi considerada verdadeira pela ciência. Algumas dessas hipóteses foram mais tarde abandonadas, outras não. As hipóteses abandonadas se tornam relíquias arqueológicas da atividade imaginativa da ciência. Um exemplo é o caso da hipótese do éter, o quinto elemento da constituição cósmica, formulada desde antes de Aristóteles, e que só foi abandonada em fins do século XIX. Durante milênios considerou-se que o éter era uma substância que recobria o espaço sideral. Calvino não se serve dessa hipótese, mas de outras menos conhecidas, mas que durante alguma época foram consideradas perfeitamente verdadeiras. A partir da hipótese apresentada no início, o conto desdobra narrativamente suas consequências lógicas até o absurdo. Seu método literário é uma inversão do reductio ad absurdum, a estratégica retórica da regressão infinita, na qual um argumento é subtraído de suas premissas até chegar a uma condição contraditória. Calvino, ao contrário, desenvolve progressivamente as hipóteses até seu absurdo cômico. Todas as histórias contam com a presença do personagem-narrador Qfwfq, cujo nome impronunciável parece ter sido derivado de uma álgebra desconhecida.
Qfwfq atravessa toda a história do universo, desde sua criação, sendo então uma testemunha privilegiada da formação do cosmo. Nesse sentido ele emula a pretensão de onisciência do observador científico padrão. As Cosmicômicas foi chamada pelo poeta Eugenio Montale de“fantascienza alla rovescia”, ficção científica ao avesso. Italo Calvino não pode ser facilmente classificado como escritor de ficção científica. Ele antes é um fabulista especulativo, que carnavaliza o discurso científico, fazendo aparecer o “inconsciente linguístico” que se esconde sob a transparência abstrata de sua objetividade.

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