Creio firmemente que a literatura é uma espécie de jogo, um tipo especialíssimo de Lego (aquele jogo infantil de montar figuras, paisagens, coisas), e por isso gosto de dizer que a literatura é o Lego da linguagem.
Todo grande escritor brinca, mesmo inconscientemente, com essa matéria lúdica e paranoica que é o texto literário. Alguns, como Cortázar em “O jogo da amarelinha”, Osman Lins em “Avalovara”, Joyce em seu “Ulysses”, Graciliano Ramos e seu “Vidas secas” (o primeiro romance-desmontável de nossa literatura), e mesmo Antonio Calado no delicioso “Reflexos do baile”, erigem grandes monumentos nessa seara. Luiz Eduardo de Carvalho ao construir este maravilhoso “Xadrez” (Editora Patuá, 2019), uma narrativa inteligente, original e instigante a partir de uma ideia, aparentemente simples, a disputa de uma partida de xadrez, ingressa nessa brincadeira séria de escritores.
O romance, de gênero epistolar, nos conta a história de um jogo disputado por carta entre dois absolutamente distintos personagens. De um lado, Emanuel Torres, um exilado português no Brasil, homem conservador, de direita, culto e sofisticado. Do outro, Joel Russo, um jovem assassino que cumpre sua pena por duplo homicídio num presídio em Fortaleza, homem de poucas leituras e sem qualquer requinte ou sofisticação.
O que, a priori, parece se encaminhar para um conflito de interesses e posicionamentos perante o mundo e a vida, torna-se aos poucos, a cada carta trocada, a cada confissão firmada entre os jogadores, uma grande amizade que se revela na relação quase paternal que se estabelece entre eles. Emanuel, para Joel, transforma-se em Manu, um velho e culto português que, muito gentilmente, passa a contribuir para a sua formação cultural, indicando e emprestando-lhe, durante todos os cinco anos em que se desenrola a partida, livros dos mais diversos gêneros e autores.
Luiz Eduardo, a partir das escolhas de seu personagem, nos brinda com a sua própria formação de leitor nos ofertando uma seleta lista de bons textos. A história cobre o período que vai de outubro de 1977 a maio de 1983. Nesses quase cinco anos de disputa, a troca de cartas registra impressões acerca dos eventos históricos que se vão sucedendo nesse período. É tempo da Abertura Política no Brasil, da Anistia, da volta de exilados políticos ao país, do surgimento do Partido dos Trabalhadores e da liderança de um torneiro mecânico conhecido como Lula, da ascensão de Margareth Tatcher e Ronald Reagan, da invasão do Afeganistão, da morte de Lennon e Elis Regina.
Os protagonistas, além de indicarem seus movimentos de peças na partida que disputam, marcam as jogadas dos fatos políticos, sociais, econômicos e culturais no grande tabuleiro da História. Evidentemente, a partida disputada entre Manu e Joel é uma bela alegoria da existência, com suas derrotas e conquistas, com o estabelecimento de relações afetivas a partir do reconhecimento das grandes diferenças que se apresentam, com a valorização da cultura como bem maior da humanidade.
O livro tem final surpreendente e mais não digo para não estragar a surpresa do leitor. No final das contas, quem sofre o Xeque-mate nesse grande romance somos nós.
Bsb, 13.09.21
Leonardo Almeida Filho, também conhecido como LAF, (Campina Grande, 1960), é professor universitário, escritor, músico, artista plástico e reside em Brasília desde 1962. Mestre em literatura brasileira pela Universidade de Brasília (2002), publicou Graciliano Ramos e o mundo interior: o desvão imenso do espírito (EdUnB), 2008, O livro de Loraine (Edição do Autor, romance, 1998), logomaquia um manefasto (híbrido, 2008); Nebulosa fauna e outras histórias perversas (e-galaxia, contos, 2014), Babelical (poemas, Editora Patuá, 2018), Nessa boca que te beijo (romance, Editora Patuá, 2019) e Grande Mar Oceano (romance, Editora Gato Bravo/Portugal, 2019 – Editora Jaguatirica, Rio de Janeiro, 2019), além de contos, crônicas e poemas em revistas e jornais.
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