Fernando Andrade entrevista a escritora Nic Cardeal
FA: O sentido de observação na crônica é retratar um evento, um objeto. Passá-lo com palavras como um bom café. Mas temos na sua escrita a intermediação da poética que transfigura o narrado fato ou evento em figuras, em imagens, danças, cintilações que não apenas fotografam, mas pintam um outra duplicidade que é a estética da poesia. Como é essa dupla camada de tinta que sempre revela mais e mais sob a leitura?
NC: É verdade, um dos tipos de crônica é a poética! E, tendo em conta que eu percebo o mundo, os sentimentos e as emoções, muito mais pelo ângulo da poesia, creio que, mesmo em minhas crônicas, a poesia se destaca. Veja bem, lembrando que poesia é comunicação, com ou sem linguagem escrita – é toda a produção artística que provoca emoções. Ela não está apenas no poema (o gênero literário cuja forma é o verso, livre ou não), nem apenas na literatura, ela permeia as mais variadas manifestações artísticas. Assim, você pode encontrá-la não somente no poema, mas também no romance, no conto, na crônica, ou mesmo na fotografia, nas artes plásticas, na arquitetura, no cinema, no teatro etc. Analisando em particular o meu ‘traço literário’, creio que desde sempre fui mais atraída pelo onírico, pelo sonho, então sigo um rastro um tanto quanto ‘bachelardiano’ em meus textos. Gaston Bachelard, filósofo, químico e poeta francês, disse que “uma página em branco dá o direito de sonhar”, então eu sonho – e escrevo. Em suma, penso que minhas crônicas são semelhantes a uma colcha de retalhos, ou retratos aleatórios – que de alguma maneira se entrelaçam – de eventos internos, psíquicos, onde a percepção e a sensibilidade trabalham pelo avesso do que capto do mundo e da realidade, ou seja, há a transfiguração da realidade em uma ‘pintura’ feita de muitas camadas, mas a principal delas é a alma. Caio Fernando Abreu disse: “escrever significa mexer com funduras”. Eu gosto muito quando consigo mexer com minhas funduras e transformá-las em palavras!
FA: O lúdico aparece nos seus poemas de forma a misturar estados da natureza, aqui tanto humana quanto de tempo. Como é brincar com as palavras num gênero que é muito da observação dos fenômenos?
NC: É certo que a crônica é um gênero que trabalha essencialmente com a observação dos fenômenos. E, quando pensamos em ‘fenômenos’, estamos nos referindo às coisas que estão no mundo, à essência dessas coisas, bem como de que maneira nós as percebemos no mundo, no tempo e no espaço. Mas, quem se arriscaria a dizer que não podemos acrescentar à receita do ‘dizer o cotidiano’ uma boa pitada de lirismo, de poesia? Talvez seja por isso que eu admire tanto as crônicas de Rubem Braga, considerado um dos maiores cronistas brasileiros, além, é claro, de Clarice Lispector, Fernando Sabino, Luis Fernando Veríssimo, Marina Colasanti, entre tantos outros cronistas incríveis. Silvânia Siebert, doutora em Linguística Aplicada pela UNICAMP, e professora do Programa de Pós-graduação em Ciências da Linguagem da Universidade do Sul de Santa Catarina – UNISUL, em seu estudo A Crônica Brasileira tecida pela História, pelo Jornalismo e pela Literatura (in: Linguagem em (Dis)curso – LemD, Tubarão, SC, v. 14, n. 3, p. 675-685, set./dez. 2014 – http://dx.doi.org/10.1590/1982-4017-140313-4713), assim anota, quando menciona Rubem Braga, em trecho de sua crônica A traição das elegantes – O mistério da poesia: “Braga escreve que a crônica é coisa vã e cansativa. Mas pensa no efeito poético. De onde vem? interroga-se. E, para reconsiderar a sentença, cita Camões. Dá-lhe gosto trabalhar com as palavras, com os sentidos. E a crônica permite este gesto, de estar cá e lá, da incerteza, da reflexão, do poético em coisas que parecem comuns, mas aos olhos dos cronistas transformam-se em matéria-prima de alta qualidade” (sublinhado meu). Então, o lúdico está permitido também na crônica, afinal, para sobrevivermos ao cotidiano, muitas vezes tão massacrante, há que termos direito à matéria diáfana de que são feitos os sonhos, os devaneios, as epifanias!
FA: Minha família por parte de pai é de Minas, e minha avó tinha fazenda lá. Havia muita contação de histórias, fábulas, lendas, contos. Era antropomorfizar a natureza com enredos, tudo ficava vivo. Senti um pouco esta atmosfera na sua linguagem, híbrida entre formas e gêneros. A Alma da nuvem que forma um estado poético. Fale um pouco disso.
NC: Gosto muito dos livros de G. Bachelard, A terra e os devaneios da vontade, A terra e os devaneios do repouso, O ar e os sonhos, A água e os sonhos, A poética do devaneio. Neles, Bachelard enfatiza a imaginação, e diz que “imaginar é aumentar o real em um tom”. Em O ar e os sonhos (São Paulo: Martins Fontes, 2001), inclusive, há um capítulo dedicado às nuvens. E ele escreve (pp. 189 e 190): “As nuvens contam-se entre os “objetos poéticos” mais oníricos. São os objetos de um onirismo do pleno dia. Determinam devaneios fáceis e efêmeros. (…) Em suma, o devaneio das nuvens recebe um cunho psicológico particular: é um devaneio sem responsabilidade. (…) O sonhador tem sempre uma nuvem a transformar. A nuvem nos ajuda a sonhar a transformação.” Portanto, se imaginar é, de fato, aumentar o real em um tom, creio que seja possível ao escritor utilizar-se de uma linguagem híbrida entre formas e gêneros, pois “a imaginação não é um estado, é a própria existência humana”, conforme escreveu o poeta inglês William Blake. Assim, penso que em Costurando ventanias ousei tomar de empréstimo as nuvens de Bachelard, o significado de imaginação de Blake, e fiz no livro uma mistura de devaneios poéticos em prosa. Como eu já disse dia desses, Costurando ventanias é um livro poético sem poemas, feito num rastro contínuo de ondulações pulsantes, às vezes febris, às vezes gentis, que ousam o verbo estendido em uns contos e outras crônicas – como se fosse possível, no paradoxo da existência, cerzir ventos e armazená-los em extensa colcha de retalhos a aquecer paisagens de dentro. Enfim, os ventos finalmente se erguem, querendo o movimento, a passagem, idas e vindas, costurados entre vírgulas, indagações, na meticulosa agulha da palavra – prontos para o vislumbre da alma!
FA: Como se dá a “tradição familiar” nos seus contos? A lembrança de pessoas da família. O informado que não é tão crível porque parte e passa pelo filtro das maquinações da memória . E como fica tudo isso no trabalho de depuração da escrita?
NC: Bem, no meu caso acredito que talvez nem se trate de “tradição familiar”. Suponho que seja uma considerável dosagem de saudades do que se foi – as lembranças sempre acesas como faróis no fundo da alma, indicando melhores caminhos ou alertando para aqueles que não devem ser percorridos – penso que seja isso. É fato que a família, quer queiramos ou não, é o início, o berço de nossa percepção de mundo. As lembranças familiares que seguimos carregando no decorrer da existência têm grande peso na forma como encaramos os eventos, as circunstâncias, os dramas, os obstáculos do caminho, ainda que depois de adultos tenhamos alterado nossos trajetos, mudado de rumo, de cidade, de país, não importa. A “tradição familiar”, ou mesmo a ‘não-tradição familiar’ acompanha-nos por todo o percurso da existência, ainda que a neguemos. Não há quem não seja tocado pela presença – ou ausência – familiar. A escritora, uma das principais idealizadoras do movimento Mulherio das Letras, do qual faço parte desde a sua criação em 2017, e queridíssima amiga, Maria Valéria Rezende, no maravilhoso livro O voo da guará vermelha (Rio de Janeiro: Objetiva, 2014), questiona – acertadamente: “o que há de verdadeiro nas coisas que a gente lembra? (…) Imaginando e escrevendo, então, se pode inventar outro destino, outra vida, fazer girar para outro lado a tal roda da fortuna?” (p. 100). Ainda, em seu outro livro, Quarenta dias (Rio de Janeiro: Objetiva, 2014), ela completa: “(…) eu, com minha história mentirosa, colcha de retalhos de fatos verdadeiros.” (pp. 146 e 147). Portanto, no trabalho de depuração da escrita é sempre possível [e permitido] ultrapassar a veracidade das lembranças, ou seja, sonhar para além do real, invadir o espaço do imaginário, já que “nada é rígido para quem alternadamente pensa e sonha” (G. Bachelard). Ou, como escreveu Rubem Alves (Na morada das palavras, Campinas/SP: Papirus, 2003), depois de citar poema do místico Ângelus Silésius (“Temos dois olhos. Com um vemos as coisas do tempo, efêmeras, que desaparecem. Com o outro vemos as coisas da alma, eternas, que permanecem”): “Pois é isso que faz a alma: ela toma as memórias do primeiro olho como se fossem argila e lhes dá a forma que o coração pede. Por oposição às memórias do primeiro olho, que são exteriores a nós, as memórias do segundo olho são partes de nós mesmos. Quando as recordamos, o corpo se altera: ele ri, chora, brinca, sente saudades, medo, quer voltar – às vezes para pegar no colo aquela criança amedrontada. E nem sabemos se foi daquele jeito mesmo ou se o recordado é uma fantasia criada pela alma. Mas para a alma isso não importa.” (pp. 137e 138 – sublinhado meu). O que importa mesmo, no fundo bem profundo, é a liberdade que temos de ultrapassar as fronteiras da realidade, e mergulhar de cabeça, mente, coração, no espaço em branco infinito da imaginação, afinal, “o branco que me atormenta é o mesmo branco que me sustenta. Porque escrever tem de doer para existir” (Nic Cardeal, Costurando ventanias, Guaratinguetá/SP: Penalux, 2021, p. 66).
Completíssimo entrevista com a poeta cronista escritora de mão cheia e coração exposto Bic Cardeal, escritor entrevistador de mão cheia Fernando Andrade. Um belo soma de literatura .