FERNANDO ANDRADE: O livro é interface que permite ao leitor adentrar no universo fabular da narrativa (leitura). Quando lidamos com o corpo e suas lentes, nesta relação virtual, quais serão as diferenças do processo de leitura de um livro físico, que é tão natural quanto fazer algo cotidiano. Vamos ter uma leitura cibernética?
O futuro é uma junção de todos os passados. Então a leitura será sempre muitas coisas, o suporte pode ser uma tela ou o papel, ambos subsistindo no mesmo período histórico. Como hoje coexistem plataformas de streaming de música e vinis, que voltaram a ser lançados e comercializados. Minha preocupação maior não é com a mudança dos aparatos, mas com o sujeito leitor, que é sempre um corpo. Temos a mesma carne dos nossos antepassados neandertais, ainda que a gente queira e tente fazer parecer que somos muito diferentes. O corpo é incontornável, então por mais que aconteçam avanços tecnológicos, a cibernética será muito mais um anseio ficcional do que uma realidade.
FERNANDO ANDRADE:Nos seus contos a relação física entre pessoas passa a não existir tanto, por já estar refletida pelo uso de aparatos tecnológicos onde você acopla seu desejo em bocais onde o som, a voz até suas partes íntimas se conectam com outra pessoa. Queria que você falasse desta possível variante de um universo cibernético, onde afeto dos tatos possa vir a ser substituído por interfaces mais biônicas. Comente.
MICHEL OLIVEIRA: Mais uma vez acredito que tudo acontece ao mesmo tempo. Então temos essas tecnologias que passam a fazer parte do fetiche do sexo, mas também temos o contraponto do excesso de carnalidade. Por exemplo, falamos que as novas gerações são hiperconectadas e que elas não vivem mais a experiência material. Mas aqui no Brasil o índice de gravidez na adolescência ainda está acima da média mundial. Temos também um aumento dos casos de Infecções Sexualmente Transmissíveis (ISTs), principalmente entre as faixas etárias mais jovens. Então o sexo corpo a corpo continua acontecendo e de forma muito primária, sem proteção, agora, às vezes, intermediado pelas telas. E a informação e a internet, que teoricamente levariam a humanidade a um avanço da inteligência, não passou de uma ilusão. As pessoas têm acesso à informação, mas seguem transando sem camisinha e morrendo de doenças como a sífilis, que era considerado um mal ultrapassado. Então nunca haverá a substituição, mas sim a soma. Teremos smartphones e sífilis.
FERNANDO ANDRADE: A medicina nos seus contos atinge uma grau de evolução indo mexer até com as próximas descendências. Esta tendência em descortinar a parte da existência humana pela engenharia genética não algo que assusta um pouco? Claro que suas narrativas propiciam a cura de certas doenças, uma acompanhamento mais certeiro sobre sua evolução. Fale disso.
MICHEL OLIVEIRA: Nos assustamos com as possibilidades da tecnologia da mesma forma que um antepassado nosso do século XVIII. Oscilamos entre a imaginação do terror e da salvação quando se fala no futuro da tecnologia e da Ciência. Foi sempre assim. Teremos problemas graves com os avanços da engenharia genética, assim como tivemos com os curandeiros que faziam sacrifícios humanos, com os médicos nazistas que fizeram atrocidades em nome da Ciência, com o avanço da ginecologia que trucidou corpos de mulheres negras, ou com médicos brasileiros fazendo testes de medicamentos sem autorização em pacientes com covid-19. Presente, passado e futuro, humanos todo o tempo. O Fatal Error que trago no livro não é dos bugs da tecnologia, mas do humano como um problema sem solução.
FERNANDO ANDRADE: A gente já não sabe medir distâncias. Antigamente havia a surpresa em sair de um lugar para ir à outro e não saber do trajeto. Hoje com os dispositivos sobre localização e deslocamento tudo passa por um click. A passagem do tempo se alterou para sempre? Controlamos o destino e a trajetória? O que isso muda para as narrativas?
MICHEL OLIVEIRA: A experiência da temporalidade se acelerou, e isso é só uma exacerbação da Modernidade, quando a vida passou a ser regida pela máquina, inclusive com a criação dos relógios mecânicos. Agora, com o digital e a conexão sem fios, a sensação de que tudo está acelerado é ainda maior. Mas continuamos sem ter qualquer controle sobre o destino e sobre a trajetória. E nunca teremos. Podemos sair de casa guiados pelo GPS e num cruzamento qualquer ser atingindo por um veículo desgovernado, ou então o pneu furar no caminho e ser obrigado a parar. Fora os erros de rota dos aplicativos que, feitos pelo humano, têm como característica a falha. Um exemplo para compreender como a tecnologia é ineficiente no que diz respeito ao controle: quantos são os assassinatos registrados por câmeras de segurança? Pode ser até que a filmagem sirva para identificar os suspeitos, ou nem isso, mas aquela vida que padeceu ante a câmera ela não volta. Então que controle temos? A vida continua imprevisível e inexplicável, e as narrativas precisarão dar conta disso. Agora, talvez, com uma dimensão menor, porque já não temos muitas horas de ócio e de descanso para ler. Se fôssemos contemporâneos, seria o retorno da ascensão do conto como a principal narrativa em prosa. Mas seguimos com a insistência tola e anacrônica de supervalorizar o romance.
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