Raro-efeito | Adriano B. Espíndola Santos

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Marília morreu nos meus braços, no feriado da independência; terça-feira passada. Nada indicava, tão próximo, a sombra inclemente da ceifadora de destinos. Há dois ou três meses, quando visitamos o médico para o acompanhamento de rotina, ele gaguejou, mas disse o que queríamos ouvir: “É, pelo que parece, a nossa amiga aqui está respondendo bem ao tratamento. Tenho boas expectativas”. Superamos a fase dura da radioterapia e, há pouco, havíamos nos livrado da quimio – falo no plural porque o seu sofrimento foi o meu. Ora, ainda assim, um tremendo de um filho da puta esse médico – de quem não preciso e não devo dizer o nome –; irresponsável e cretino, que usa a farda somente para computar vítimas e dividendos, tratou o caso como mais um. Mal olhou os exames e, para se despachar de nós, levantou-se, abriu a porta e deu dois tapinhas no ombro de Marília, sem se dirigir a mim. Antes de fechar, o calculista pediu à atendente para chamar o próximo paciente. A auxiliar, decerto cansada da dissimulação, soltou uma baforada e olhou-nos com pena – nós que ficamos com pena de sua sina tormentosa, com aquela ruma de gente para dar conta; como se estivessem na fila para o abate. Eu havia suplicado, por todos os santos, que Marília não se metesse mais em enrascada, com esses “santos de araque”. Mas, meu deus do céu, com o seu jeito de ser uma rolinha, inocente e adaptável, deixou-se levar pelas circunstâncias. E eu pensei que não seria justo perder o resto da minha vida questionando a boa vontade de um e de outro, tentando abrir os seus olhos. Lavei as mãos e permiti que arrumasse – ou arruinasse – os seus inestimáveis problemas, por conta própria. Por tudo que é mais sagrado, me arrependo de não ter sido o guia daquela alma pura, até o derradeiro minuto. Quando ela comprou um toca CD usado, de uma vizinha sabidona, eu dei um piti; perguntei se, além do câncer, ela estava ficando doida; para quê iria usar aquela porcaria etc. A coitada, com as gemas embaciadas de sofrimento, respondeu como se respondesse ao nosso pai: “Cássio, eu tenho uns cedezinhos e queria tanto escutar… Pelo menos, para desanuviar a cabeça…”. Estou eu atado ao chão dessa casa, molhado de suor e seiva bruta, agarrado ao mísero aparelho de som da minha querida Marília, arriscando suprir a sua ausência com as músicas do CD de que mais gostava: The Very Best of Enya. Deve ser um amuleto em que se amparava na terra, para se manter plácida, sobrevoando a superfície no limiar do céu. Sim, ela está no céu, muito distante de mim. Oro para reencontrar a minha irmã e dizer-lhe que pequei e nunca fui homem de acompanhar a beleza e a miragem de sua alma rarefeita. Por que os bons sempre partem tão cedo?
Morro, aqui, no limbo e no purgatório dos aflitos.

 

Adriano B. Espíndola Santos é natural de Fortaleza, Ceará. Em 2018 lançou seu primeiro livro, o romance “Flor no caos”, pela Desconcertos Editora; em 2020 os livros de contos, “Contículos de dores refratárias” e “o ano em que tudo começou”, e em 2021 o romance “Em mim, a clausura e o motim”, estes pela Editora Penalux. Colabora mensalmente com a Revista Samizdat. Tem textos publicados em revistas literárias nacionais e internacionais. É advogado civilista-humanista, desejoso de conseguir evoluir – sempre. Mestre em Direito. Especialista em Escrita Literária. Membro do Coletivo de Escritoras e Escritores Delirantes. É dor e amor; e o que puder ser para se sentir vivo: o coração inquieto.

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