Fernando Andrade: Você com estes dois livros de contos abre uma importante lacuna sobre narrativas ficcionais no universo da moda. Levando em conta já os seus dois livros de contos, como pensou esta relação entre a literatura e o mundo da roupas?
Salma Soria: Outros autores já trabalharam com a temática das roupas e da moda. Em sua maioria, obras voltadas ao infanto-juvenil, então, nesse sentido, não estou fazendo algo inédito dentro da literatura. Narrar o mundo das roupas vem do meu amor pela costura e moda. Não se resume a ela, claro, mas é meu princípio, fontes de grandes ensinamentos e minha escrita expõe essa paixão. Sempre tive a vontade de escrever sobre a moda no mundo ficcional, também rejeitava todos aquelas alegorias do “Diabo veste Prada”, filme adorável, mas recheado de clichês que só reforçam a inacessibilidade da moda como a condição maior de se fazer moda. E moda é cultura, arte, sociedade, essa complexidade de planetas que não podem serem resumidos ao casaco de plumas e um cabelo sem nenhum fio fora do lugar. A moda é maior que a pequeneza dos clichês que imputaram a ela. E isso escoa para minha escrita. Um tudo que escoa para a moda. Não como uma “desculpa”, mas porque é uma emergência. A moda, esse universo tão importante para a economia, para o planeta e que atravessa gerações precisa estar presente na literatura de ficção com todos os seus complexos contornos. Não posso fugir disso.
Fernando Andrade: A relação entre gêneros parece vir tanto de uma costura de tecido têxtil quanto da tessitura de um texto de ficção. No segundo livro você amplifica a estética não só dentro de uma galeria de estilistas e costureiras, mas também torna a roupa artigo de gente mais comum, num dia a dia que vemos em qualquer cidade. Por que optou por esta linguagem cotidiana de um universo mais amplo do domínio da roupa?
Salma Soria: Roupa não é só sobre moda. É tema complexo. “Muitas roupas aqui” é uma conversa de frente com diferentes atos do cotidiano que envolvem estar vestido com alguma coisa. Então, você vai encontrar histórias de camelô, passadeira, lavadeira, estudante, artesão, faxineira e não somente as velhas figuras glamurosas da moda, por exemplo. Optei por essa linguagem para estar próxima do que é corriqueiro e as experimentações textuais acontecem nessas janelas. Ora poéticas, ora frenéticas.
Fernando Andrade: Como é seu processo de criação dentro destas narrativas? É um personagem que te chama atenção ou uma certa situação dramática que põe o fio a alinhar o novelo da história?
Salma Soria: Um doce caos porque é a tensão de levantar voo. É quando as asas do que o personagem está vestindo começam a se levantar e quando voam, o vento passa por mim e começamos a conversar. Quem determina a criação é a ação do que está ali. E isso pode ser, literalmente, qualquer coisa.
Fernando Andrade: O que uma coleção que um estilista inaugure para uma estação pode dizer para um certo modelo de fazer escrita, ou produzir ou não produzir rótulos, segmentações?
Salma Soria: Uma roupa sempre terá a companhia de uma etiqueta e ela evoca consciente ou inconsciente um rótulo: social, moral, cultural. Todo mundo se vestiu em algum momento para se sentir aprovado dentro desses rótulos. O que torna o vetor da roupa uma ação muito poderosa. Fazer roupa envolve muitos processos. Estudos, incontáveis testes. Nesse sentido, é o mesmo com a escrita. Fazer e fazer e fazer. Desmanchar e refazer. Mas acho que a comparação para por aí porque a plataforma que o designer de moda escolhe para narrar suas criações é a confecção da roupa. Do escritor, a pedreira da folha em branco. E no ato de escrever, a folha em branco encontra a etiqueta da roupa e rasga o rótulo. No texto, tudo é possível.
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