Fernando Andrade: Queria começar esta entrevista pela ideia sobre senso comum que parece em contos pode não cair bem. Nos seus contos há sempre uma certa distorção da normalidade tanto sobre temas como formas de burilar a escrita. Teu ângulo sobre um tema parece ser sempre de um lugar que forneça pouca luz e muitas sombras para criar certo efeito de estranhamento sobre a linguagem e a vida. Fale um pouco disso no seu livro.
Leonardo Almeida Filho: A vida é o espaço de muitas sombras e luzes artificiais exibindo construções sociais, muitas delas absolutamente falsas, máscaras, fantasmas especulares de uma realidade distorcida. Tudo é aparência. Onde a medula? O tutano? O escritor, para mim, tem a função de, não iluminar essas gretas escuras, mas trazê-las aos olhos, expondo-as, exatamente como quando levantamos uma pedra e os vermes, expostos, se retorcem incomodados no lodo e limo. É isso.
O papel do escritor é incomodar. Um artista que é bem digerido não consegue ir muito além da superfície, mergulhar na sombra, extrair os vermes da sociedade. No máximo consegue um bom arroto do leitor. O estranhamento se dá quando a construção narrativa toca o nervo doente agora exposto. Ali, onde o pus se acumula, é que a ferida deve ser tratada. A literatura é essa droga que não cura, mas espreme o pus sem piedade.
Fernando Andrade: Na sua escrita o leitor é parte tão fundamental quanto a noção de autoria. A leitura absorve sinais e signos que parecem que ficam num certo imaginário criativo do autor que quando escreve, no seu caso, vaza e multiplica certa potencialidade narrativa em direções que vão da semiótica, da filosofia e política. Dentro desta maquinaria potencial que multiplica suas histórias, como fica a relação da imaginação e fantasia com estas indagações conceituais que te ajudam a entender? Este mundo louco e angustiado que nossa mente apura?
Leonardo Almeida Filho: Confesso que tenho um leitor ideal. Na verdade, creio, todo autor tem seu leitor ideal, mesmo que não confesse. Quando escrevo, gosto de jogar com as referências do leitor. Sou um fã da literatura de Borges, talvez se explique.
Para isso, minha narrativa é sempre uma colcha de retalhos, repleta de intertextos, mil referências e citações, que, às vezes, ocultas, estão lá, latentes, latejando, esperando o olhar atento desse leitor ideal para desarmar o artefato literário que construí. Tudo foi dito, tudo foi escrito, então cabe a mim a tarefa de dizer o mesmo de forma diferente e aí reside a aridez do trabalho do escritor. Foi assim em meu primeiro romance,“O livro de Loraine”, quando radicalizei essas pontes intertextuais. Foi assim no segundo romance, “Nessa boca que te beija”, que é uma grande homenagem a essa paranoia que é a literatura. No “Nebulosa fauna” outras histórias perversas” enveredei pela narrativa curta, tentando traçar um certo painel crítico dos constructos contemporâneos. Acredito que a composição de um texto é uma espécie de séria brincadeira de Lego, de montagem e desmontagem de blocos de linguagem. Um autor, como uma criança, solitariamente constrói esse universo diegético como se brincasse com as possibilidades da existência.
Fernando Andrade: Queria que você falasse na noção de política e politicamente correto dentro da sua literatura? Quais os níveis de um e de outro para entrar dentro de um universo ficcional?
Leonardo Almeida Filho: Em primeiro lugar, acredito que toda arte é política. Não me iludo, não se iluda, não há exceção. Mesmo o mais “inofensivo” texto (ou quadro, filme, escultura, música) é, por natureza, político. Um texto manso, que não incomoda, é o mais perigoso animal da ficção, pois escamoteia o inominável, o desprezível. Ao construir seu texto, um escritor faz escolhas mesmo que inconscientes. Sou um escritor da tradição “Graciliana”, não consigo estar sossegado diante da realidade do mundo, toda ela calcada em exploração do homem pelo capital. O intelectual, e o artista é, por princípio, um intelectual, tem a obrigação moral de, em sua atividade, estar ao lado do povo, da massa, da legião de desvalidos do planeta. Anacrônico, eu? Talvez, mas esse é meu evangelho literário e me sinto muito feliz em estar ao lado de gente como Saramago, em seguir a tradição de um monumento artístico como Francisco Buarque de Holanda.
Faço minha escolha e sigo em frente, alheio às críticas.
Fernando Andrade: Há uma ironia Almediana dentro da voz de seus narradores? Uma certa ironia auto-ciente-referencial sobre o que o escriba está realizando. Comente.
Leonardo Almeida Filho: A ironia é a arma mais refinada de um autor, que o digam os grandes como o velho genial Machado de Assis, mestre do recurso. Se um autor tem a intenção de ir fundo na ferida, que o faça sem piedade, sorrindo pelo canto dos lábios,
saboreando o sacrifício de seu inimigo e sem qualquer crise de consciência, afinal de contas, espera-se que esteja do lado bom da luta. A literatura é uma forma cruel de combate e nós autores temos a obrigação de torná-la uma arte, sendo mais irônicos que cínicos, mais sutis que explícitos, mais enxutos que gordurosos. Essa é a grande tarefa do escritor: dar ao leitor o melhor texto possível, seduzi-lo, encantá-lo, para que ele, em sua sapiência de leitor, possa, ao final da leitura, participar da batalha ao seu lado.
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