Fernando Andrade: Há em sua poesia, uma relação intensa sobre o interior das coisas, tanto de um flor quanto de ser tão “duro” como uma pedra. E você não fica numa estética de superfície, com a palavra faz a lavra até amolar o conceito, torná-lo exposto, sua polpa, sua cavidade. Como é o trabalho com a linguagem para este torno poético?
Marcel Vieira: Eu tendo a pensar a poesia muito demoradamente, sem pressa, para cavar fundo a matéria da palavra. Me interessa a sonoridade interna aos versos e a construção de imagens sólidas, feitas para colidir. Ao mesmo tempo, recorro a referentes muito perceptíveis – a pedra, a casa, a praia, o vulcão – mas que aparecem menos enquanto sentido objetivo, e mais como matéria plástica e sonora. Nesse meu primeiro livro, compilo poemas escritos em diferentes épocas, sem uma unidade temática, mas com um esforço muito grande em estabelecer uma unidade sensorial, com um uso muito recorrente de versos metrificados, porém sem a fixidez das formas clássicas, como se me interessasse mais o fluxo interno dos versos entre si, que cada um enquanto unidade sígnica.
Fernando Andrade: A finitude parece rondar sua escrita por sobre um véu que não é de um niilismo. A linguagem também perece quando não há relação. Parece ser um tema seu que as coisas quando não se relacionam, podem ficar fraturas expostas. Fale um pouco desta questão.
Marcel Vieira: Alguns poemas de “um abismo quase” guardam preocupações metafísicas, mas, como diz Drummond, “sem mistificação”. A vida, a morte, o amor, o medo, o desejo, eu costumo vê-los na sua materialidade, e busco trazer, em forma de imagens e sons, essa defesa da relação material com o mundo como forma de existência e resistência. Há muitos poemas que eu chamaria de políticos no livro, como “revolução”, “paciência”, “anticorpos”, e eu insisto sempre que essa política se dê exatamente na relação histórica e material com o mundo, no encontro dos corpos e na altercação das formas de vida. Escrever sobre o mundo e encontrá-lo de algum modo, tocá-lo, senti-lo. A poesia, para mim, desempenha um enorme papel nessa conexão sensível com o mundo.
Fernando Andrade: Sua linguagem me lembra vir de um lugar onde não existe o centro, a cidade, a urbe. Vem dos interiores; das regiões agrestes, das quintas das fazendas, onde a palavra era tratada com certa cerimônia e não com desperdícios de sentidos. Pode-se falar dos centros urbanos, mas não com os signos deles. Fale disso.
Marcel Vieira: Eu sou um homem urbano, mas da primeira geração familiar que nasceu na capital, quando os antepassados vieram do interior. Tenho na memória muito dessa passagem, guardando ainda formas, práticas e visões de mundo de um Brasil ainda arcaico, mas que se moderniza a passos lentos e muito contraditórios. No poema “deserto”, há os versos: “sequer do sertão/ me confesso afeito./ nas setas da bússola/ que levo comigo/ meu coração triste/ pende ao leste, sempre”. É um poema que fala da untuosidade do eu-lírico, de uma certa recusa do sertão, da aridez, da secura típica do interior, mas também comum ao coração do Brasil, ao planalto central, ao poder. Essa contradição entre o liquidez (e, portanto, modernidade) do eu-lírico e a aridez do território, acredito, fala bastante sobre as contradições que ainda imperam no nosso país.
Fernando Andrade: Você é um roteirista experiente e escreveu um romance extremamente cinematográfico há um tempo atrás. Como chegou a sua poesia à esta visualidade?
Marcel Vieira: Como falei anteriormente, acredito muito em uma construção sensória e material da linguagem, capaz de evocar, tanto em imagens quanto em sonoridades, a apreensão concreta dos versos pelo leitor. Escrevo prosa, escrevo roteiro, mas a poesia exige de mim um tipo de trabalho muito específico com a palavra, que não pode se limitar à sua compreensão objetiva, seja descritiva ou narrativa, e nem se apegar a uma exposição meramente subjetiva e emocional de temas com apelo contemporâneo. É um grande perigo da poesia hoje: querer-se mais afeita a temas que à linguagem. Por isso, me esforço sempre para encontrar, nos temas que me interessam, as dimensões plásticas e sonoras das palavras, na relação com a tradição e no desafio de encontrar soluções para fugir do verso livre como regra – o que me parece ser uma grande tendência (e uma grande limitação) da poesia brasileira hoje.
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