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Carine Mendes
Psicóloga, Professora e Escritora
Mestre e Doutora em Psicologia pela USP
Contato com a autora: Instagram @_carinemendes_
FERNANDO ANDRADE: Queria saber de você se seu livro se estabelece, principalmente, através das três relações da linguagem humana: a escrita, a leitura e a escuta? Se sim, como você juntou elas numa relação entre gêneros?
CARINE MENDES: Olá Fernando, é um prazer contribuir para o Literatura e Fechadura. Agradeço pelo convite e pela oportunidade de tecer novas considerações e associações a partir de sua leitura e suas impressões sobre Ponto Cego. O(a) leitor(a) sempre convoca o(a) escritor(a) a repensar o texto por meio de lugares e ângulos diferentes e imprevistos. Percebo pelo teor das questões algumas associações com a teoria psicanalítica e reconheço a pertinência dessa conexão (não intencional) entre a minha escrita literária e a minha formação acadêmica, vinculada à abordagem psicanalítica, em específico à teoria winnicottiana.
Seguindo esta linha de interlocução, é possível pensar Ponto Cego como uma narrativa que se faz metáfora e na qual o inconsciente escapa e se intromete no entremeio da codificação estética e da montagem narrativa em peças. Sobre isto, parafraseio Winnicott (psicanalista inglês), para admitir que “é uma alegria estar escondido, mas um desastre não ser achado”. Logo, é uma satisfação poder dialogar sobre essa possibilidade de leitura.
Sobre a sua primeira questão, acredito que a escrita, a leitura e a escuta do texto estão subordinadas ao caráter estético que se sobrepõe e que não se resume ao simbólico e ao imaginário, mas explora possibilidades de efeitos produzidos também pelo não saber, o não visto, o não legitimado enquanto existência. Nesse sentido, a escrita pode ser paradoxal, pois comunica e não comunica; a leitura tem um caráter absolutamente polissêmico e pode, inclusive, ser contraditória; e, a escuta traz o desafio de também captar o não representado, mas que está de certa forma presentificado pela falta.
A narrativa progressiva e linear nos conforta pela sustentação de “ilusões de contorno” e nos dá uma dimensão de começo, meio e fim. Em termos psicológicos estamos sempre estabelecendo ordem, conexão, sentidos processuais. O que tentei propor, sem romper radicalmente a linearidade, está na “desordem” narrativa aparente e na sustentação de efeitos estéticos não necessariamente compreensíveis de forma direta e racional, mas, ainda assim, possivelmente geradores de sensações, incômodos, surpresas e, por isso mesmo, potencialmente pensáveis. Um dos recursos para tentar alcançar este propósito foi justamente a concatenação dos diferentes gêneros como uma enunciação que se repete e ao mesmo tempo acrescenta novos detalhes pelas diferentes formas de narrar.
FERNANDO ANDRADE: Acho que sentimento de posse pode estar ligado ao espaço? Pegamos tudo que encontramos no entorno? Mas em lugar nenhum, podemos falar que ele pode ser também um exercício da falta, do lastro desejante, como um corpo que só se preenche pela necessidade de amor, afeto, depois que sentiu uma ausência?
CARINE MENDES: Acho interessante a percepção de um “exercício de falta”, pois é uma reflexão que caminha no sentido do que expus na questão anterior e faz todo sentido com a delimitação de um ponto cego do mundo. A noção de posse ou pertencimento nos remete a vínculos e lugares aos quais entramos em contato e com os quais estabelecemos vinculações provisórias. No entanto, como estabelecer ligações quando não se definem limites, cercanias ou visibilidades?
Ponto Cego, enquanto fantasia, se remete tanto a uma localização ficcional, quanto a uma experiência psicológica, a saber, a de negar existências a partir da invisibilidade. E por isso a pergunta de orelha: Como aceitamos e acolhemos, assim como as personagens, aquilo que não sabemos sobre o que nos cerca e sobre nós mesmos? A realidade não vista, porque negada ou não legitimada, não deixa de existir, ainda que muito nos esforcemos para manter os apagamentos. O que nos falta enxergar? De certa forma, é necessário um processo de ressignificar “as vistas” para retomar os fluxos de percepção.
Num lugar em que faltam, sobretudo, limites espaciais e afetivos, a mistura entre as personagens confunde propositalmente e, a meu ver, esvazia ao invés de preencher, como se precisássemos antes delimitar para inserir o que quer que seja. Não é na possibilidade de delineamento que podemos conceber dentro, fora, meio? Não residiriam nossos pontos cegos nesta experiência tão humana de nos perdermos e nos encontrarmos nessa mistura com outras pessoas, lugares e coisas, separados e fusionados a um só tempo?
Penso que coletivamente, em função de hegemonias e normatividades, construímos também pontos cegos e zonas de deslimites em que produzimos categorias e grupos invisíveis. Neste ponto, amplio a metáfora lugar/não-lugar para refletir também sobre tudo aquilo que escapa ou não é incluído nas relações sociais de pertencimento. Então, Lugar Nenhum, o ponto cego do mundo, acaba de fato sendo um convite ao encontro com a falta e com a tentativa de delimitá-la.
FERNANDO ANDRADE: Narrar é entrar no corpo de uma pessoa-personagem. Mas este corpo é poroso, cheio de interstícios. É através disso que a ficção e a psicanálise podem estabelecer conexões entre fazer da poética – verso, da narrativa- ficção, do ensaio-corpo teórico?
CARINE MENDES: A conexão entre Psicanálise e ficção é sempre possível, mas neste caso, de minha parte e em termos interpretativos, ela tem se dado a posteriori. Apenas como leitora consegui estabelecer conexões que você também destaca entre texto e teoria psicanalítica. Penso que isto se dá justamente pelo potencial da psicanálise em se fazer transitar quase como um dialeto que produz ângulos específicos de leitura. Se considerarmos que assimilar uma nova língua é modificar formas de pensar, sentir e conceber as diferentes realidades, todo texto torna-se passível de ser analisado, basta que o(a) leitor(a) seja fluente. A Psicanálise se aproxima do ficcional e do metafórico desde seus primórdios, o que a situa como um recurso profícuo para a interpretação também da literatura.
Outra associação feita a partir da sua questão é que quando penso no ato de narrar como um dizer para além do dito, ressalto que em Ponto Cego temos um narrador onisciente, onipresente e onipotente (de gênero indefinido) que não só apresenta o enredo, como faz parte desta imiscuidade entre as personagens e que salta aos olhos do(a) leitor(a). Retomo este detalhe para especificar que também podemos pensar em uma posição narrativa que transcende as separações entre narrador-personagem, narrador-escritora e narrador-leitor(a). Logo, a posição do narrador, enquanto lugar de enunciação, complementa o sentido de fusionamento e fragmentação em que as vozes narrativas se confundem em unimultiplicidades.
FERNANDO ANDRADE: Até que ponto esta mistura de gêneros no seu livro, entre ensaio, poesia, romance, nos daria uma interessante investigação sobre o desejo?
CARINE MENDES: Para responder a esta pergunta penso em duas linhas de argumentação. A primeira é a que me remete à compulsão à repetição e à incessante busca inconsciente, em várias facetas aparentemente sem ligação, pela consumação de desejos não realizados. Assim, teríamos um desejo narrativo, performatizado a partir do corpo-texto, de repetir em diferentes formatos algo que se pretendeu alcançar. Conexão e encaixes? Interfaces entre diferentes percepções?
Compreensão em diferentes níveis? Não saberia te responder com exatidão e talvez precise que os(as) próprios(as) leitores(as) falem sobre os efeitos desta mistura de gêneros. O que sei é que Ponto Cego, como um corpo-textual-mosaico, já nasceu multifacetado desde o início.
Outra possibilidade de argumentação estaria relacionada à proporcionalidade direta entre o grau da invisibilidade e a variedade de recursos estéticos utilizados, ou seja, a variedade e mistura de gêneros tratam justamente de tentar abrir mais possibilidades de acessos para que as invisibilidades se façam notar.
A diversidade de gêneros estaria atrelada, portanto, ao ato de transgredir apagamentos a partir de versos, palavras, imagens, temas, ilustrações, sonhos, fábulas etc.
Se o desejo sofre deslocamentos, temos que considerar diferentes maneiras de acessá-lo e mantê-lo em movimento, num processo incessante que nos mobiliza em direções múltiplas. Como comentado anteriormente sobre a leitura ser um “exercício de falta”, compreendo que é preciso primeiramente instituí-la a partir da dialética entre as personagens, para aí sim conceber a narrativa em seus aspectos desejantes. O que querem as personagens que se imiscuem até pelos nomes? Que desejos residem no ponto cego do mundo? O meu desejo de escrita, certamente, levou-me a este momento de publicação e difusão, sustentado em um processo lento de insistência e montagem. Só me resta saber sobre aquilo que será mobilizado pelas leituras alheias e diversas e dar continuidade a este desejo a partir de outras narrativas.
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