Fernando Andrade entrevista o poeta Igor Fagundes

Igor Fagundes - Fernando Andrade entrevista o poeta Igor Fagundes

 
 
 
 
 

FERNANDO ANDRADE: Imagens são figurações semióticas que aprontam travessuras com os sentidos. Seu livro tubos de ensaio (Penalux, 2021), nos remete à mistura de elementos da narrativa, da poética e das imagens visuais. Para você, Igor, há hipóteses a testar com este livro? Como foi sua lapidação?

IGOR FAGUNDES: Ao apresentar-se com e como numerosas testagens (poéticas, estéticas, literárias, gráficas, dramatúrgicas, performáticas, rituais, míticas, musicais, sonoras, rítmicas, espaciais, cênicas…), tanto a palavra “tubo” se ensaia quanto a palavra “ensaio” se entuba ou se intuba: “tubo” é, sim, um um meio para ensaiar, mas também o que se ensaia. Em termos laboratoriais, “ensaio” seria a testagem. Todavia, o livro se quer teste “de poesia”. Cria-se, aí, um ruído: “tubos de ensaio” = “textos de poesia”? Em uma das epígrafes, a poeta Ana Martins Marques é citada-citando João Cabral de Melo Neto, para quem a poesia seria o “laboratório da linguagem”, onde-quando ela se pesquisa. Em outra epígrafe, retomo a pergunta de uma segunda poeta, Marília Garcia: “Um poema deixa de ser poema / porque se confunde com um outro gênero? / será que este teste poderia ser um ensaio?”.

A crítica/crise do gênero se impõe, mas não porque não mais se encontre o gênero “poesia” (o texto Também não se ausenta o “ensaio” como um outro. É possível, sim, reconhecer os dois, sem dúvida. E, ao mesmo tempo, com dúvida. Uma das hipóteses é partir de todo esquema binário como “tese” na tradição ocidental no sentido de contrapor-se a ele, entrevendo o não binário de uma traição em tradução de “poema-ensaio” – “antítese” para uma “dialética” sem “síntese”: “protocolo de [in]segurança” para o “e[n]xame” verbal que aponta a “a fal[t]a do laudo” como o [im]propriamente poético. Essa difusão-confusão é pensada desde o microtextual até o macrotextual do projeto gráfico, seja dos elementos da capa, das orelhas, seja dos elementos do miolo. Escrevem-se poemas em verso e poemas em prosa. Ensaiam-se prosas poéticas e, também, o instante de uma poética sem verso nem prosa (esta da diagramação dos signos, linguísticos e não). Escreve-se um poema ensaístico no encerramento (ou é abertura?) da obra e escreve-se uma prosa ensaística em hibridação poética com um já “convencionado” gênero híbrido: a crônica (difusa e confusa em sua relação com o conto, o miniconto, o diário, o fragmento, a ficção, a biografia, a ficção-biografia ora também fundidas). Na suposição de “ensaio” fora do literário e ora dentro do científico (já não na hibridação e, sim, na eugenia racional do nomeado, em ciência, “artigo”), agora é o sentido de “científico” que se submete a “teste”, uma vez atravessado pelo artístico. Este, por sua vez, como atravessamento de literatura, música, dança, performance, rito, prolifera hipóteses: a teorização como prática poética? A prática como teorização poética? A velha metalinguagem vem, de repente, nova? O binário de teoria e prática ainda presta?

Há uma terceira margem no duplo de ciência e arte: a religião, que abre tanto a noção de um sistema dogmático e doutrinário quanto a noção assistemática, não cristã, não letrada, do mítico.
Atravessam a cultura tida como erudita do objeto “livro” as culturas populares de matrizes africanas e indígenas. Literatura e macumba passam a constituir não só o teste de uma rima toante em um rumo destoante, mas também um rumor consonante. Testa-se “macumba” como laboratório de produção de palavras e corpos encantados. Essa macumba como performágica, transfiguração de morte em vida (de um sentido único, faltoso, morto, em um sentido múltiplo, farto, vivo) se ensaia como o acontecimento fantasma da poesia. Essa poesia que se ensaiar dentro e fora de um gênero, de uma generalidade. Essa poesia plural-singular de uma hora-lugar Queer da linguagem.

Toco na palavra Queer para testar o livro não como estrita experimentação formal, algum formalismo solipsista, alienado do social e do político. As formas que arrisco se justificam na medida de um questionamento dos binarismos coloniais, ocidentais, os quais sustentam relações de poder, oposições, hierarquias: masculino e feminino é uma delas. Não cito, nas epígrafes, Marília Garcia e Ana Martins Marques por acidente. É no propósito de um deslocamento de algum lugar de fala autocentrado masculino para um lugar de escuta não masculino, nem heteronormativo. Logo, questionar o gênero da escrita como um texto de poesia supõe questionar o convívio com o gênero – fixo – de quem escreve, de quem fala. O compromisso com um gênero fluido possível para o sujeito da escrita, que está inscrito pelo que não seria ele, ou pelo que não poderia caber na assinatura Igor Fagundes. Na capa do livro, igor fagundes, em letras minúsculas, sugere um “amiudamento” da autoria – da autoridade– masculina e, ainda, uma rasura no nome próprio, vez que a ideia de propriedade implica um território delimitado, com dono, separado, e tudo o que se ensaia é aberto, sem dono, reunido, misturado. Na capa, tubos de ensaio, em minúsculas, vingam como substantivos comuns, ditos ordinários. O incomum/extraordinário está no não dito, em um dizível futuro, furado.

Esse território (de literatura!) aberto, mágico, de coletividade, citações, excitações, incorporações, consultas, diálogos é o que será chamado “terreiro” (de macumba!). Então, para além do binarismo de gênero, há a dimensão étnico-racial, no que diz respeito ao que é texto branco e não branco: meus signos de matiz branca sofrem um giro na gira dos mitos de matriz africana. Não sendo EU, o gênero neutro, fluido, do sujeito que escreve é X. O gênero neutro, não binário, da escrita é X: é X a poesia? Com um X no meio do EU, a cortar EU, aparece EXU como verbo “teXtar” no “testar”: a encruzilhada como âmbito da convergência e da divergência; da disseminação de caminhos; da mobilidade de sentidos. Nela, toda força centrípeta (de escritor e escrita, mas também de leitor e leitura) sofre uma força centrífuga. X é sinal matemático para o que excede em uma multiplicação; X é sinal matemático para o que falta numa equação. X se usa para demarcar gêneros não binários; X se usa para demarcar genéticas (há XX, XY e as variantes). Em meio a elas, X se intromete entre “ensaio x poesia”, “prosa x verso”, “letras x artes”, “literatura x macumba”, “religião x arte”, “ciência x arte”, “branco x não branco”, “masculino x feminino” (no que os conflitua e os multiplica). Em suma: “centro x margem”, “norma x desvio”. X, aí, se diz “com” e “contra”. Sobretudo, é lido “isto versus aquilo” – versus diz o étimo de “verso”, de “diverso”, de “conversa”, de “transverso”. X, pandêmico, viraliza em todo o livro, gerando variações para “tubos”. Nestes, os significados serão inúmeros. Numerosos, os significantes: “tubo” passa mesmo a ser “tudo”, quando se faz “turvo” e “turbo”, de modo que este mesmo “t” se intrometa no “viral”, tornando-o “virtual”: uma ausência que não é de todo ausente, porque presente, uma quase-presença; uma presença que não é de todo presente, porque ausente, uma quase-ausência. O poético está nesse quase que desdiz a falta por dizê-la excesso. Num contexto de isolamento social, a busca por conexão tecnológica, afetiva, ética, política, ecológica faz o distanciamento testar proximidades no livro, do livro; exterioridades testadas como interioridades de uma casa, quarto, corpo, espírito. Assim se deu o processo de construção do livro ao longo da pandemia da Covid-19: por consultas com obras já incorporadas, outras literaturas apropriadas, em ebulição corpórea e, a um só tempo, por consultas com macumbas, com corpos_espíritos encantatórios no espaço rasurado do “sozinho”. Loucura? Um EU, um X, um EXU ilusórios, iludidos? Chega-se, aí, a mais um X: delírio x lucidez como variantes do anunciado como desvio x norma, doença x saúde – de quê? De um texto. De um sujeito. Aí, o viral-virtual de X pode bem ser o humano como o vírus, bem como pode um vírus se tornar um modo, sem maniqueísmos, sem nada de diabólico, de um ser divino: Omulu ou Obaluaê é o orixá para quem, por quem e com quem, na terceira margem de vida x morte, princípio x fim, oferenda-se a obra, enquanto ela simultaneamente se dedica à memória de um poeta – Marcus Vinicius Quiroga – vítima da covid. Através de seu poema “Arquitetura e asas”, sua morte se revira em vida por muitas rotas de escrita e leitura. Nessas asas da arquitetura-livro, testa-se um prefácio póstumo e um posfácio prévio (já não como paratextos, mas intratextos), do mesmo como as orelhas – qual, a esquerda? qual, a direita? – são tubos partícipes das esquerdas e direitas dispostas, compostas e contrapostas na obra. Os duplos e as dobras de esquerda(s) x direita(s) estão na arquitetura alada de um testamento (parágrafos) nas páginas pares em consulta/conexão com as testagem (poemas) nas páginas ímpares.

FERNANDO ANDRADE: Os amigos são tão importantes. Eles te ajudaram na construção sintática e poética da costura entre criação e referências, e com tanta gente neste tubo onde a amizade não é líquida, mas estruturante, como foi esta musicalidade entre conversa íntima e escrita.

IGOR FAGUNDES: No teste da solidão dentro de casa, por conta da pandemia, os amigos, as companhias são os fantasmas muitas vezes camaradas dos livros na biblioteca, autores nem sequer conhecidos ou só reconhecidos por seus enredos, versos, personagens, as quais me chegam estranhamente-familiares.
Essa proximidade do remoto e no remoto é a mesma que se dá com os fantasmas de uma família consanguínea a conversar comigo, em lockdown, por e-mails, WhatsApp, redes sociais. E é estranhamente familiar, é remotamente próximo cada fantasma mesmo, cada espírito, materialmente vivido, visto, escutado e, portanto, amizade sólida enquanto insólita, nada líquida porque gasosa, etérea, entre o vapor e a vertigem, a fumaça e a fuligem. Logo, “intertextualidade” não é, aqui, mero recurso literário: é um gesto salva-vidas, salvaguarda de X, quer dizer, um salva- mortos, sem os negar, tão-só por os transfigurar na dobra de encanto x desencanto.

Pessoas factualmente tidas como desconhecidas são chamadas à página como antigas conhecidas, parcerias não evocadas com sobrenome, mas por apelidos. Na família da literatura, Drummond, por exemplo, surge como Carlos somente. Ferreira Gullar, codinome para José Ribamar, chega a ser chamado Riba. E a poeta viva, contemporânea, Danielle Magalhães, que nem é minha amiga, produz uma intimidade poética por meio de um vocativo “Dani”, advindo de uma afinidade descoberta com sua poesia. Já na família transversa das macumbas no avesso do avesso das literaturas, o mundo desconhecido de pretos-velhos, exus, malandros pivetes, pombagiras, também insurge amigo. O livro, aliás, começa justamente no dia quando lanço o anterior, Macumbança, em meu aniversário de 2020. Uma hora antes da live de lançamento, apresentou-se em minha casa, ao meu corpo, um corpo da rua, o espírito de um “pivete”, chamando-o a pichá-lo fora dos muros, a rabiscar seus pés dançantes nas minhas mãos dançáveis sobre um chão de página. E “pivete”, dentre tantos sentidos provocativos, também inscreve X em casa x rua. E mais: fala um encontro com o desviante, o escapado, o fugidio – este outro, outrem de mim, em mim, comigo. E quem não acredita em nada disso, tem um Quixote ao meu lado, uma Estamira nos meus montes de lixo, uma Stela do Patrocínio sempre me ouvindo.

FERNANDO ANDRADE:  Há uma relação interna entre a prosa do “Testamento” (escrito em contagem progressiva, por Parágrafos) e os poemas da “Testagem” (escrita em contagem regressiva, por amostras de versos)? Como se combinam ou não?

IGOR FAGUNDES: Combinam-se e não. Não se combinam formalmente. Ou se combinam pela não combinação, a qual gera esta forma sem fôrma, de deformação e transformação. Seja na identidade e diferença da própria palavra “testamento” e “testagem”, ambas a evocar um “testador”, seja na identidade e diferença da disposição diagramática, no como “Testamento” e “Testagem” convergem, divergindo, no projeto gráfico. Os parágrafos do Testamento estão sempre em uma página (e em só 1 página) par, à esquerda, enquanto as amostras da Testagem ocupam uma página (e sempre 1 página apenas), ímpar, à direita. Há X não só nas entrelinhas. Há X entre páginas. Um X que pode conectá- las e desconectá-las. Uso com frequência a palavra “conexão” propositalmente. Nunca falamos tanto, durante a pandemia, em “conexão”: “Como vai sua conexão? Sua internet caiu? Travou? Como está sua conexão com o mundo? Com os amigos? Com o planeta Terra? Com o vírus?”.
Como vai a conexão entre os textos, entre os sujeitos, entre as páginas – são perguntas herdadas (estão no testamento) e herdam amostras (estão na testagem).

Os poemas dispostos à direita querem, por vezes, testar o que seria um “poema direito”, escrito em verso, frequentemente com métrica regular, escansão. Mas, justamente porque a direita está atravessada pela esquerda, esses poemas aparecem não raro prosaicos, com versos bárbaros, para além do limite de um alexandrino. As prosas à esquerda estão à margem do que seja um documento legal, jurídico, do campo do Direito: esses parágrafos do Testamento. Afinal, são poéticos, são heranças biográficas tanto quanto ficcionais; literárias tanto quanto macumbeiras; caseiras tanto quanto rueiras. Essas prosas do testamento são muito porosas, sonoras: reúnem a espacialidade do texto à temporalidade de compassos, andamentos, danças, cantos, músicas. Não ignoro – até provoco – a expectativa de que a prosa do Testamento seja uma espécie de teoria do livro ou teoria do poema posto na página contraposta, fosse a Testagem das amostras a prática propriamente do poético. Sim e não! No X de teoria x prática, se há oposição, conflito, tensão, há encruzilhada, multiplicação, indeterminação. A teorização à direita não é muito direita! Trata-se de uma prática (esquerda, sinistra, gauche) de poesia. E a prática de poesia não deixa de ser uma teorização de si própria e até mesmo pré-texto para ensaiar as prosas de tudo o que é tubo. Ao mesmo tempo que a conversa se dá na unidade-dúbia desta janela aberta pelo pas de deux das páginas par e ímpar, o parágrafo primeiro dança com o diverso da amostra 30, até que o parágrafo 30 dance com A amostra 01. Os tubos entre as páginas também as levam, as entubam e as intubam para fora do livro. O lockdown imposto pela COVID-19 testa uma performatividade do isolamento, uma transgressão do distanciamento, da parede, do muro. O espaço do livro, como o espaço de uma casa, de um corpo, faz “livro”, “casa”, “corpo”, avançar-sem-avançar à “rua”, e vice-versa. A cidade chega por televisores, computadores, janelas eletrônicas e janelas abertas na parede. A cidade me inunda de dutos. O viaduto do subúrbio de Madureira. O tubo dos carnavais na Avenida Marquês de Sapucaí.
Procissões, blocos, cortejos, sabenças populares não dicotomizam com os saberes eruditos.

FERNANDO ANDRADE: A dança incorpora elementos do corpo (musculaturas) mas também da linguagem musical utilizando uma cinética bem cinematográfica. São frames em quadros que no seu livro parecem ser um movimento similar ao do corpo da dança. Como constituiu esta relação entre dança e texto.

A palavra “tecido” está tanto no étimo da palavra “texto” quanto no íntimo da palavra “corpo”. O laboratório, a poética, a macumba, a literatura estão neste encantamento de palavra como corpo e do corpo como palavra. Chamo o encante de corpo-palavra “dança”. Assim, há dança no tubo de ensaio, há ensaio no tubo da dança, há ensaio no tubo do poema, há poema no tubo de ensaio, há poema no tubo da dança, há dança no tubo do poema, ou seja, repetição e variação de uma sequência coreográfica. É interessante notar uma cinética cinematográfica atrelada a uma cinética coreográfica, partindo de uma linearidade discursiva que se atreve a uma não-linearidade, quer dizer, a escrita – quando e enquanto dança – não se desloca apenas da esquerda para direita, mas também da direita para a esquerda e, ainda, de cima para baixo (segundo o peso, a gravidade do corpo, do olho) e de baixo para cima (segundo um salto de dança em que se trocam, no chão da folha, os pés pelas mãos). Daí, mais uma vez, a pertinência de um poema “Arquitetura e asas” como índice remissivo. Índice que nos remete ao que há de asa na arquitetura do livro, da casa, do corpo, do espírito. Ao que há de asa no laboratório-sumário desdobrado em mais dois, forjando três, mais do que três. A maneira como o poema de Quiroga se faz índice, mas também epígrafe ou título das “minhas” 30 amostras deixo aqui sem spoiler, como surpresa.

De todo modo, há a técnica da improvisação e há a coreografia: o prefácio é um texto que se faz depois de um livro estar escrito? Mas ele é colocado antes! Ele é no fim, mas vem no começo.
Começa depois do fim. Também por isso digo que o prefácio é póstumo. Em outro extremo, o posfácio se aloca após o livro, mas o posfácio foi escrito por mim, ou melhor, por X, antes da obra.
Ele já existia, como um livro à parte, independente e, de repente, interdependente, integrado a este.

Todas as arrumações e desarrumações vão no sentido de produzir movimento: um ir e vir, um avançar e recuar, um subir e descer, um passar e parar, uma dança. Laboratório de contatos e apoios, de quedas e elevações, de testagem de parâmetros de espaço, forma, tempo, ritmo, dinâmicas… Escrever como quem dança pode ser uma metáfora, mas posso testar um indiscernível – concreto abstrato? – de escreverdançar e, portanto, um indiscernível de lerescrever, de lerdançar, no qual o pouso, o repouso, nunca será inação, um contrário de movimento, mas sua potência, seu imediato, sua imediação.

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This Article Has 1 Comment
  1. Maria Dolores Wanderley Reply

    Excelente entrevista! Parabéns!

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