Baiano de Santo Amaro da Purificação, Felipe Ferreira é escritor e jornalista. Formado em Letras pela Universidade Católica de Salvador (Ucsal) e pós-graduado em Estudos Culturais pelo Centro Universitário Jorge Amado (Unijorge), Felipe já escreveu três livros livros — “Griphos Meus” (2014), “Desmembro” (2020) e “Ca-lice” (2022) — e colabora com veículos de comunicação desde 2014, sendo também colunista do coletivo de escrita Indra. Seu próximo romance será ambientado numa cidade fictícia do interior do Nordeste e contará a história de dois irmãos gêmeos que se matam um no outro.
Trechos de “Ca-lice”, de Felipe Ferreira
I- “Portugal é o berço e o caixão”. Li num dos poemas da Matilde Campilho e isso nunca mais saiu de mim. Nascimento e morte. Entre elas, não consigo cravar com precisão se atravessei o oceano, ou se foi ele que me atravessou deixando um vão. De certo, só sei que alguma versão de mim havia ficado do outro lado da margem no fluxo entre os passados e o agora, que é sol um só na cabeça. Minha relação com Portugal tinha como nascente um entrecho, uma encruzilhada que borrava minha existência como indivíduo e como parte atuante, o que não garante ser integrante, de um projeto de nação antigo que se perpetuou com o passar dos anos e assentou suas bases de poder por quem finca as estruturas no solo.
A gente galopa e volta ao início. Um enjambement progressista que regressa entre a senzala e a casa grande, o mito e a morte, a pátria e seus párias. Uma das lições que a morte da minha avó me ensinou foi que quanto mais a gente enterra o passado mais a gente soterra ele dentro de nós. Quanto maior a profundidade, o esconderijo, maior a longevidade do refrão adormecido no peito… O país carrega o parir e o matar nas mãos. Fomos paridos e mortos no mesmo ato. Os escombros de um parto são como os escombros de um país em ruínas. Nunca conseguimos descartar por completo. É um lixo relegado ao esquecimento compulsório de quem preza pela assepsia e despreza o cadáver que precisa ser limpo.
II- A rapariga foi a primeira das muitas telas que viriam a ocupar a casa do Renato, e inclusive, a serem criadas lá. O destino passaria a ser a origem. Nosso encontro terminou como uma revoada de pássaros no pôr do sol às margens do rio. Secamos três garrafas de vinho, acendemos dois incensos de patchouli, ouvimos várias versões da mesma música e discutimos sobre qual era a melhor. O calor expurgou o álcool e nos deixou bem à vontade.
Gargalhamos sem motivo aparente, ele fumou um, eu falei que tava de boa. Parei de fumar!
Disco arranhado e uma cantiga de perguntas entre amigos. Perguntei se ele era do jornalismo, ele se revelou músico. Um mestre do sopro. Tocava gaita, clarinete e de quebra ainda arranhava no violão. Pedi uma prova, ele provou. Pedi uma música, ele trocou de instrumento. Um ar quente correu sorrateiro por cada artéria do meu corpo. Sangue quente, pernas contorcidas, olhos em vertigem. Um som abafado saia dos meus lábios inferiores, no compasso da língua que descia e subia, numa destreza que despertava vãos antes inabitados por um objeto humano alheio não identificado. A mesma boca que bailava suave pra lá e pra cá na reta brilhante da gaita conseguia romper o trajeto primário que poucos homens sabem explorar.
III – Não tinha mais ninguém. Não tinha Deus nos acuda. O sofrimento continuava a tilintar vidros, a rachar paredes, a sangrar feridas. Era só Ela e Ele. Um reencontro após um longo período de estiagem do otimismo e da crença, que a fazia questionar com ferocidade o real propósito, o tear invisível da vida. Esperava uma palavra, um sinal, uma resposta, ainda que tudo caísse de joelhos no torturante repetir. Por mais que doa, por mais que sangre, viver é repetição! A máquina de moer o tempo é intangível. Não conseguimos enganar o karma-presente, mas podemos mudar as vias e descobrir o sentido-caminho. Carregamos no ventre a língua, a pátria, e cabe somente a nós, em posse da caixa-preta do passado, seguir e contar a real história.
IV – Ser mãe me define mulher. Casar me define feliz. Ter fé define o caráter que eu tenho.
O trabalho define minha dignidade. Essa definição demasiadamente ao pé da letra me incomoda profundamente. É como se definir pessoas fosse um artifício castrador para melhor enquadrá-las numa fôrma comportamental. As instituições panfletam a cartilha de conduta para uma vida ideal. O normal é um cinto de castidade histórico castrador dos prazeres de viver como se quer e um pilar sagrado em nome da comunhão familiar em discordância aos desejos individuais. Casa X Caixa X Casamento. As pontas podem alternar entre si. 8. 80. Como diz o ditado popular: quem quer um, quer o outro. Não importa a ordem. A casa é uma extensão do voto. Matrimônio. Casar induz uma normalidade que não me apetece. Redoma. Entre eles, um altar particular sedutor, no seu ilusório controle e numa capacidade de blindar a fragilidade interior do que fica do lado de fora da caixa do caos, que cada um de nós carregamos no peito.
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