O culto – a culpa | Gustavo Adolfo Ramos Mello Neto

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Só tu, demônio, nunca me faltas nenhum instante (Murilo Mendes)

As ruas estavam vazias. Era domingo. Entrei na igreja. Sentei-me bem atrás. Era um culto de (de?). Todos os pastores já estavam sentados em seus tronos atrás do púlpito, enquanto que um deles se dirigia ao microfone.
– Irmãos!!!! – dizia em uma voz tonitruante.
Sua batina (Batina? Pastores usam batina?) parecia tremer ao som de sua voz.
Falava do pecado. “E Satanás tentou Jesus em sua grande jornada pelo deserto”. “A tentação é o Mal e nós somos o Bem”. E se virou de costas para o público, erguendo os braços, pedindo piedade, num ato suplicante de profunda tristeza. Como faziam os primeiros pregadores da Síria, de Éfeso e de Corinto. Era a expressão completa de nossa desastrosa existência, de nossa miséria nesse mundo de cães.
Olhei-o e notei algo estranho. Prestei mais atenção. De fato, havia um enorme decote na batina, um decote nas costas que descia até um pouco abaixo da cintura. Via-se a pele nua e o suor brotando. O corpo do pregador não parecia de fato estar rogando humildemente ao Criador, mas em pleno êxtase, em movimentos que só poderiam ser chamados de lúbricos.
Olhei novamente. Lá estava ele com seu terno (terno?), com sua voz, com seu pudor. “A fé é o firme fundamento das coisas que se esperam, e a prova das coisas que se não vêem” (Hebreus 11:1).
Na medida em que falava, ia desabotoando sua braguilha com uma das mãos.
Olhei mais atentamente, ele não parecia estar fazendo isso, apenas estava abotoando o seu colete.
Uma senhora de uns 45 anos, que está sentada na segunda fila, levanta-se e diz: – quero dar o meu testemunho. “Pois, venha, irmã”, responde o pastor. Ela, então, aproxima-se do microfone e começa um longo discurso. Fala sobre sua vida de pecadora e de como a superou (superou?). Sinto-me emocionado e percebo que o público também está. Num instante, vejo-a passar muito rapidamente para uma fala muito mais emotiva, de forma que grita. Grita e diz “pecadores, vejam isso, pecadores”, e abre a blusa num arranque. Os seios estão ali, caídos e encimados por mamilos escuros, como pequenas coroas pardas.
“Esse é o pecado, pecadores, e foi com isso que pequei”.
Como poderia ter pecado com isso que dá a vida e que agora parece exaurido? – pensei. Olhei melhor, não havia mulher alguma; apenas o pastor perorava, gritava e admoestava seus fiéis, mas também acalmava e dava consolo: “fiel é Deus, que vos não deixará tentar acima do que podeis; antes, com a tentação dará também o escape, para que a possais suportar” (1 Coríntios 10:13).
Apesar do pastor, a mulher volta ao púlpito. Está sem camisa e agora deixa cair a saia. Está ali completamente nua. Tem o cabelo muito comprido e preso. Solta-o. “eu voltei, irmãos, para redimi-los. Olhem meu corpo. Dentro dele está a salvação. E a maneira de entrar é por aqui” e aponta. Sua voz vai subindo cada vez mais e grita repetidas e repetidas vezes “é aí a salvação”.
Seu corpo está em êxtase.
Mas, para que o êxtase religioso? – pensei. Santa Tereza D’Avila os tinha e sabia que seu corpo servia a Deus. Era a casa do Senhor.
E a mulher, como uma santa de outrora, apontava para o seu sexo e dizia: “é por aqui, eu vos disse, e esta é a maior bondade de Deus: a criação. Tudo se encontra aqui e depois cresce e explode para os nossos sentidos”. “Aqui está a verdade, a fé e também o horror, o ciúme, o assassinato”. E vira-se para todos os lados em que há público, mostrando aquele triângulo escuro em que diz estar tudo. Em seguida, começa a girar como um dervixe ( https://m.youtube.com/watch?v=7I1N0c_f8nY&t=14s ) ou como uma sacerdotisa da morte e da vida. Gira como um pião rodando sobre si mesmo. Todos íamos sendo levados pelo seu girar e eu via rodar as paredes da igreja, o que me provocava enjoo e tontura. Pensava que ia cair.
Volto a olhar para a mulher. Olho para o seu sexo e seus peitos murchos, mas não sinto nada de lúbrico. Sinto, sim, que ali Deus está e Ele vai se revelar. Apocalipse. Hierofania.
Todos estamos girando e Deus está em nós. Deus e todos os deuses e demônios estão ali e ali nos fazem sentir tontos. Cristo está sem duvida presente – uma presença entre nós – e se faz crucificar várias vezes.
A mulher grita como num orgasmo gigantesco e coletivo. O público gira e canta. Gira e canta. Gira e canta. Demônios também giram como pássaros voando em círculo e entoam estranhos hinos. Os pastores saem de seus tronos e começam também a girar como dervixes. Suas batinas são cones centrípetos.
A mulher rodopia e o cenário também gira, provocando vertigens e confusão. A mulher canta em latim, em grego e em aramaico até que todos se veem cansados e vão se acalmando lentamente e tudo vai voltando vagarosamente a ser como antes. “Onde abundou o pecado superabundou a graça” (1 Romanos 5:20).
Levanto e vou em direção à porta. Lasso e satisfeito, desapareço abruptamente do cenário.
Segundo o professor romeno-americano Mircea Eliade (Tratado de história das religiões, 1949/2010) hierofania diz respeito à revelação do sagrado no mundo profano. É a revelação de um deus ou de uma deidade. Na Índia, isso é conhecido como darshana.

II

No dia seguinte, me perguntava: foi tudo verdade? Passei toda a manhã, mesmo no trabalho, tentando reunir elementos de memória que pudessem provar que eu havia visto de fato esse culto. Que lançassem uma luz sobre essa sombra que é o pensamento.
Eu não frequentava nenhuma espécie de igreja. Havia ido algumas vezes à missa, mas sempre por uma razão protocolar; numa missa de formatura do filho de alguém ou numa missa de sétimo dia de algum conhecido. Um culto evangélico seria improvável. No entanto, a vida dá voltas, em direção ao pior, mais frequentemente, e nos surpreende. Por vezes, nada de problemático ocorre externamente, mas dentro apodrece. E essa putrefação só notamos depois. Depois que nos roeu as bases. Então, invade-nos o futuro e o futuro é com certeza a morte, que chega antes de acontecer. Então, eu passei a morrer antes e o estava fazendo já há alguns meses. Uma desesperança seca passara a acompanhar-me as noites e as tardes.
É a solidão, pensei. Tentei namorar alguém e, de fato, consegui. Mas ela não suportou a estiagem da minha alma. Achou-me chato e sombrio.
Saíamos nos fins de semana. Íamos ver um filme ou a um barzinho. Eu não suportava muito o filme. Ficava inquieto e ela percebia. Se íamos a um bar, eu tomava tanto que ela tinha que me carregar – forma de me suportar. Fora isso, parecia o tempo todo triste. Na verdade, ela devia pensar que eu estava cansado dela, mas isso não era verdade, era mesmo tristeza. Ou algo assim. O que poderia ser assim? Depois surgiu Andréia…
Certa vez, andava lentamente pela noite e passei diante de uma igreja. Nada me chamou a atenção a não ser um cartaz. Este “convidava” para Deus, mas, mais que isso, prometia um esperançoso tratamento completo contra a depressão.
E se eu tentasse? – pensei. Foi então que fui a essa igreja e vi o que lhes contei.
Pois, bem. No dia seguinte, na segunda-feira, voltei. Havia culto. Lá estavam os mesmos tronos e os mesmos pastores sentados. Imaginei que eram figurantes. O pastor que falava no púlpito também era o mesmo. Os gestos eram os mesmos. A moral. As súplicas.
Do mesmo modo, vi o pastor desabotoar a braguilha. Mas, diferentemente do dia anterior, já não havia dúvidas de que era exatamente isso que ele estava fazendo.
A mulher, do mesmo modo, acedia ao microfone e fazia o mesmo discurso. Também começava a girar e a girar e a girar. Todos os pastores levantavam-se de seus tronos e giravam e todos os fiéis faziam o mesmo. Havia um zumbido enorme que percutia em todo o prédio e as pessoas giravam e giravam e cada vez mais rápido.
Porém, de maneira diferente do dia anterior, o pastor que pregava e a senhora que girava nua começaram a se abraçar. Seus corpos enlaçados também giravam, só que mais lentamente que os outros. E giravam e se abraçavam e o pastor tinha a braguilha completamente aberta. Num passe rápido, que mal pude perceber, houve uma penetração. O pastor e a senhora nua giravam embutidos um no outro, ao mesmo tempo em que não economizavam movimentos da carne. Da lei da carne, diria Santo Agostinho.
O zumbido, como uma orquestra de flautas, subia de volume e o casal enlaçado dava gritos mais de louvor que de prazer. Era um coito sagrado, cuja função, imaginei, era a de fecundar a fé.
E houve então um orgasmo, como um grito da terra, um barulho como de um terremoto. Todos gozavam ao se representar no casal enlaçado.
O resultado era como um enfarte coletivo. Então, todos ficaram cansados, extenuados. Eu também.
Novamente dirigi-me à porta e desapareci do cenário.

III

Tudo aquilo continuava incompreensível e chocante para mim. Passei ocamente todo o dia pensando no coito ritual que assistira na misteriosa igreja. Pensava, indo e vindo com o pensamento (Barthes, 1990), mas não chegava a nada. Como era possível algo assim nos dias de hoje?
Teria havido, de fato, cultos eróticos rituais na história das religiões. Freud nos fala, em um curioso artigo – “O tabu da virgindade” – de tribos ditas primitivas em que o ritual sexual não tinha apenas a função de fertilizar a terra, mas também de tirar a virgindade de uma ou mais mulheres que já estavam chegado à fase núbil. O deflorador era trazido de longe, um estrangeiro. Depois de desvirginada, a jovem podia se casar com um homem da tribo. Para o criador da psicanálise, o ódio por ter sido deflorada ficava ligado ao estrangeiro e não ao marido. Que coisa genial, uma engenharia dos sentimentos!
Mas, esse tempo primitivo (primitivo?) já passou e passou bem passado. Hoje, os aspectos eróticos das religiões modernas são inteiramente simbólicos. Como pode, pois, uma igreja evangélica executar um rito sexual tão fora de moda?
Fosse como fosse, eu precisava voltar. E isso não só para ver se deveras podiam me ajudar com minha depressão, mas precisava entender o que havia visto.

IV

Quis, de fato, voltar. Precisava discutir com a minha incredulidade. Pedi que Andréia me acompanhasse. Sua presença seria como um juiz que dentenciaria se aquilo era realidade ou delírio. E ela disse que iria “por que não?”.
O cartaz dizia que havia culto todos os dias. Fomos.
Chegamos cedo. Procurei um lugar onde poderia ver ao mesmo tempo os fiéis e os pastores. Aproveitamos o tempo e comemos amendoins enquanto o culto não começava.
Quando o culto teve início, o pastor, o mesmo pastor dos dias anteriores, dedicou-se a falar da morte. Falou da morte de Cristo, falou da morte dos mártires, falou de muitas mortes. “Onde está, ó Morte, a tua vitória? Onde está ó, Morte, o teu aguilhão?” (Coríntios 15:55).
Na verdade, a morte não existe para o cristão, a não ser como ameaça ou como momento superável no caminho da Salvação. É como a morte de Lázaro, que o salvador retirou vivo da tumba. Essa é a promessa para todos nós, sermos novos Lázaros, deixando longe o reino da necessidade.
E o pastor discursava e discursava sobre o final de nossos dias e se via que sua mão estava na braguilha.
A mulher de quarenta e cinco anos então subiu e ficou nua como nos dias anteriores. E do mesmo modo começou a girar. Girava e girava e o pastor pregava e falava e seu discurso ia se tornando um grande zumbido e todos começaram também a girar e a girar e era um zumbido ensurdecedor. E eu olhava por vezes para Andréia e sua reação parecia normal.
Todos giravam e giravam e giravam. No meio daquele zumbido, o pastor e a mulher se abraçaram e passaram a girar juntos. O pastor abaixou a mão e girava e girava. Porém não a levou à braguilha, mas ao bolso. Tirou dali algo metálico que não consegui distinguir, pois o reflexo das luzes sobre o objeto me tornavam cego a ele. E giravam e giravam. Eu esperava novo coito ritual. No entanto, isso estava demorando muito para acontecer.
E todos giravam e giravam. Giravam e o zumbido entontecia.
De repente, num movimento brusco, o pastor levantou o objeto que tinha empunhado e pude distinguir nitidamente uma faca não muito longa. E desceu-a sobre a mulher, esfaqueando-a múltiplas vezes ao som do forte zumbido que cercava a todos. A mulher caiu sangrando; caíra como um saco de batatas. Devia estar morta. Então o zumbido diminuiu e os fiéis passaram a entoar cantos de glória e louvor e isso num volume tal que parecia que o recinto da igreja viria abaixo a qualquer momento.
Era um ritual de sacrifício. Ritual do cordeiro morto, “cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo, miserere nobis”. Era o momento máximo da comunhão. Todos estavam com todos, irmanados por aquele corpo mole e sem vida.
A missa e seu derivativo, o culto evangélico, são rituais de sacrifício, porém são simbólicos. O que eu estava vendo era real.
Mas o que é isso? – gritei. E vomitei. Ato contínuo, tomei a mão de Andréia e puxei-a sem esperar que ela se manifestasse. Puxei-a fortemente e levei-a para fora da igreja. Então, ela me perguntou:
– Mas… mas o que foi que aconteceu contigo?
Estava indignada. Sua voz era crítica, reprovadora…
Então, saímos do cenário.

V

Nos dias seguintes não voltei aos cultos. Eu não ficara bem. Na verdade, passava por momentos difíceis. As imagens do assassinato voltavam todo tempo a minha mente, mesmo em sonhos, e eu estava ficando imprestável para o trabalho, o que eu disfarçava bem, contudo. Além disso, quando estava na rua, sentia um medo um tanto misturado com tristeza. Tinha a impressão que ia ser atacado a qualquer momento ou que ia atacar. Que o pastor assassino poderia também pôr fim aos meus dias ou eu aos dele.
O fato é que eu não fiquei bem. Não conseguia permanecer em nenhum lugar. Sentia, sobretudo, a cidade me sufocando. E ela o fazia com o seu peso e com todos os seus perigos imaginários e alguns reais. Eu tinha que me livrar dela, tinha que partir.
Não demorou muito, essas ideias se transformaram em fato. Eu ia mesmo embora. Mas, com que dinheiro? Ainda não havia recebido o pagamento do mês.
Eu só receberia daí à quinze dias e seria realmente sensato abandonar tudo? E Andréia?
O fato é que fui. Arrumei minha mochila e dirigi-me para a estrada. Para quê?
Andei até o primeiro posto de gasolina. Ali, comecei a pedir carona, tanto dos motoristas parados – carros, caminhões – quanto dos que se moviam pela estrada.
Quanto dos que estavam no posto. , com estes, eu falava. Buscava ser simpático. Um deles disse que eu não era gente, que eu não dava nenhuma contribuição à sociedade, que era um pária. Concordei com ele; como ia discordar se ele estava com a razão? Eu era um pária na sociedade, mas essa mesma sociedade estava em mim, o que era mais cruel.
Continuei pedindo carona. Para lugar nenhum.
Passou o dia inteiro e nada consegui. Acabei dormindo num canto escuro daquele posto. As pessoas tinham medo de mim.
Era um posto grande. Além de gasolina, lavagem e borracharia tinha uma bela lanchonete. Era aí que eu não me atrevia a entrar, pois concordava que era de fato um pária. Sempre soube que esse seria o meu destino. Como eu ia estar no meio daquela gente limpa, com dinheiro e podendo matar a fome?
Sonhei a noite toda com o assassinato da mulher de quarenta e cinco anos pelo pastor. Cada vez que isso aparecia , eu acordava, o que era um remédio, pois impedia que a cena fatal se consumasse. E, assim, dormia mal. Mas, ao menos estava indo para bem longe da cidade. A sensação de perigo, no entanto, de o assassino estar à espreita em qualquer canto não me abandonava, mas, estranhamente não me causava medo da estrada e de seus frequentadores…
No dia seguinte à minha partida, pela manhã, uma camionete parou. Disse-me que fosse na carroceria. Deixou-me na cidade mais próxima, em frente à estação de trem.
Eu ainda tinha algum dinheiro, podia comprar uma passagem barata e me adiantar um pouco no caminho de não sabia onde. Foi o que fiz.
Cheguei a uma grande cidade. Capital de estado. Pus minha mochila no guarda volumes da estação ferroviária e fui conhecer um pouco. Eram grandes avenidas, ruas e ruelas feias, pobres e muito antigas; e praças. Parei em uma delas e sentei-me num banco. As pessoas passavam conversando e eu me deleitava ouvindo aquele sotaque tão diferente do meu. YYEra cheio de erres guturais e tinha uma tonalidade levemente caipira. Um rapaz também de mochila parou e veio conversar comigo. Tinha o cabelo black-power e ceceava um pouco ao falar. Disse que se chamava Paulo. Contou, então, que vinha da capital do país e que havia sido roubado quando dormira num banco de rodoviária. Alguém teria aberto a sua mochila e tirado sua carteira com dinheiro, sem que ele acordasse e se apercebesse. Os documentos ficaram incólumes, pois estavam no seu bolso. Contou-me muita coisa e apresentou-me o que naquela época se chamava um baseado. Um cigarrito de maconha bem bolado.
Fumamos.
Ele me perguntou, então, se podíamos viajar juntos, pois isso seria muito mais seguro que cada um sozinho. Concordei. A estrada é perigosa. O que fazer se o inferno é os outros?
Perguntou-me também sobre onde estava minha mochila. Disse-lhe que havia deixado no guarda-volumes. Yy
– Será que eu posso deixar a minha lá também, junto com a sua?
Disse-lhe que sim e dei-lhe o comprovante. Ele foi e eu fiquei esperando. Eram dez da manhã.
Enquanto esperava, meus pensamentos não conseguiam se afastar daquela igreja, daqueles cultos. Lembrava da senhora girando e girando e mostrando o seu sexo. Uma mistura de excitação sexual e de medo invadiu-me a mente. Como podia ser que essas duas coisas aparecessem juntas? Como uma ereção ou semi ereção podia se manter diante do medo? Benditos somos nós, que erotizamos tudo! Inclusive a morte.
Pensei também em Andréia. Pensei em como foi bom aparecer outro mochileiro para viajar junto.
O tempo passou. Fui paciente; esperei bastante. Como Paulo não reaparecia, comecei a ficar preocupado. Levantei do banco e me pus a caminho da estação.
Ao chegar, fui direto ao guarda-volumes e contei que havia dado meu comprovante a outro mochileiro. O rapaz que atendia parecia já saber:
– Sim, sim. Ele veio e me disse que você havia pedido que lhe levasse a mochila. Como ele estava com a comprovante, não vi problema nenhum. Nem pensei em pedir documento, entreguei a sua mochila e ele se foi.

Que dizer? Eu mesmo dera o comprovante. Em geral, eu sou sempre o culpado (culpado e otário). E deve ter sido isso que senti na igreja, nos três cultos que assisti.
E o rapaz do guarda-volumes acrescentou:
– Quem sabe ele foi para a rodoviária. É sempre assim.
Sem a mochila, eu ficaria sem toda a minha roupa. E também sem grande parte do meu já escasso dinheiro. Ficar sem a roupa seria certamente um grande problema…
Dirigi-me quase correndo para a rodoviária, que não era longe. Subi para a região dos guichês. Ele estava lá! Estava sentado perto de um dos postos de venda de passagens.
Eu não poderia simplesmente exigir que me devolvesse meus pertences. Ele iria rir. Procurei um policial. Expus rapidamente o problema e ele aceitou me acompanhar.
Quando Paulo nos viu, seu primeiro movimento foi o de fuga. Mas não havia para onde. O policial correu e o segurou, antes que pudesse ir. Ele chorava. Acabou por devolver minha mochila e parte do dinheiro. Com a outra parte havia comprado passagens. Fomos os três, então, ao guichê correspondente e conseguimos resgatar o dinheiro, embora tivessem retido algum sob o pretexto de uma multa da empresa.
O policial quis levar Paulo para a delegacia. Disse que queria ter uma conversa. E como seu prisioneiro choramingava, não hesitou em aplicar-lhe alguns tapas. Todos que estavam ali viam a cena despudorada.
Policial, tira, samango, meganha, cana…
Senti-me culpado. Era um pobre rapaz perdido no meio do país. Mas não fiz nada para ajudá-lo, o que me faz sentir mal até hoje. Possivelmente, ele teria ao menos uma bagana com ele; seria preso em flagrante. Eu sabia que havia destruído sua vida. Sabia também que isso me dava prazer. Novamente os três cultos me invadiram o pensamento. Talvez Satanás acompanhasse meu destino.
Na sequência, rumei de volta à estação de trens. Comprei uma passagem para bem longe. Iria viajar à noite inteira e também o dia seguinte. E, de fato fui. Entrei no trem. Como outros passageiros, deitei-me e dormi no chão do corredor e só despertei no final da manhã. Os sonhos que tive, você, leitor, sabe muito bem.

VI

Desci do trem. Dei alguns passos. Na estação, um grupo de três mochileiros se dirigiu a mim. Sentamos em um banco e conversamos. Contei-lhes minhas aventuras e eles me contaram como haviam chegado ali. Juntei-me ao grupo. Dirigimo-nos para a estrada. Eu já não tinha dinheiro, de forma que antes de pedir carona, fomos pedir comida. Era a primeira vez que eu mendigava. Isso era feio e humilhante, mas a fome era intensa e nossa ideologia permitia. Chamávamos mendigar de “manguear”.
Comemos no caminho da estrada, mas já não me lembro com que recursos .
Na estrada, nossa realidade se mostrou com toda a sua cara. Éramos mendigos e, pior que isso, em quatro era muito mais difícil conseguir carona. Mesmo assim, tentávamos. Tentávamos e andávamos e não queríamos nos separar.
A presença do outro é tão desejável quanto fatal.
A estrada era cercada de montanhas verdes e, em alguns lugares, era pespontada de buracos. Eram escavações de garimpeiros. Era uma região de pedras preciosas. Só vi algo parecido quando, muitos anos depois, percorri à pé uma parte da cordilheira dos Andes. Só que os buracos aí eram tumbas.
Não conseguimos carona nesse dia e nem no dia seguinte e, então, resolvemos nos separar em dois grupos de dois. Eu preferi ficar sozinho, apesar dos protestos. Assim que nos separamos, mais ou menos meia hora depois, consegui carona. Era de caminhão. O motorista colocou uma condição: que eu fosse na carroceria, em cima da carga.
Não era fácil subir ali, o que fiz me segurando nas cordas que a amarravam. Era uma carga alta. E mesmo assim estava feliz com a carona. Sentia-a como uma conquista. Yy
Assim que o caminhão tornou-se mais veloz, percebi que a carga balançava. E me jogava de um lado para o outro. Eu tinha a nítida sensação de que ia cair, principalmente nas descidas, quando o caminhão se punha num proibido ponto morto: a banguela. Agarrei-me nas bordas. Meu corpo ia e vinha e não era apenas uma sensação. Se, de fato, eu largasse as cordas, seria certamente lançado na estrada. Tenho que confessar que senti muito medo.
Depois de mais ou menos meia hora, começou a chover. Chuva de aço. As gotas d’água vinham na direção contrária do caminhão, de forma que suas gotas pareciam lâminas de aço ao atingir a minha pele. Era uma mistura de estar a ponto de cair e ser alvejado por gotas afiadas.
Depois de cinquenta quilômetros, o caminhão me deixou num posto. Era noite e a luz elétrica do posto era produzida num gerador local. Fazia barulho. Um pouco depois de minha chegada, a luz apagou. O gerador não ia ficar a noite toda, pois isso custava combustível. Procurei um canto para dormir. Estava muito escuro e deitei em um lugar qualquer.
Não dormi logo. Fiquei pensando, lembrando de tudo ou nem tudo que se passara nesses últimos dias. Pensei no último culto. Eu não tinha que ter avisado a polícia? E Andréia, por que teria ficado tão brava comigo?
Comecei a dormir, mas, logo fui acordado. Era justamente a polícia, armada de um farolete. Um carro com três tiras (samangos, canas, homens da lei, meganhas). Ordenaram que eu entrasse no carro e me levaram para um posto policial. Enquanto íamos, me deram alguns tapas na cabeça e me chamaram de vagabundo, o que realmente eu era. Ao chegar, pediram documentos. Como estava tudo em ordem, disseram que eu ia pernoitar numa cela e no dia seguinte podia ir. Contaram-me que estavam vindo da capital e que me viram no posto e resolveram me ajudar com um lugar para dormir. Estavam contentes; a viagem parecia ter sido boa.
No dia seguinte, me mandaram embora. Achei que estava com piolhos.
Percebi que estava numa cidadezinha que parecia do século XIX. As casas com madeira na quina, mas muito despintadas. As paredes sujas, as ruas cheias de lama. Ninguém estava nas ruas, nem mesmo os cachorros. Pelo sol escaldante, já devia ser umas onze horas.
Cheguei logo à estrada. Aquele trecho era de terra e dois lados havia mata.
Pus-me a andar. Passavam caminhões, mas eram muito raros. Fiquei muito tempo até conseguir uma carona. Cheguei a um posto. Era o mesmo do qual eu havia sido levado à noite. Entrei no bar do posto e pedi informações do encarregado. Contou que ali estávamos num longo trecho ainda não asfaltado de uma estrada interestadual. Em alguns lugares próximos havia reservas indígenas. Se eu quisesse visitar uma delas, isso seria bem simples, pois ela estava a apenas a seis quilômetros dali, cinco deles naquela mesma estrada e mais um entrando num carreador.
Resolvi fazer isso. Andei cinco quilômetro pela estrada – cercada de mata – e entrei no carregador. Ali já não havia mata, mas uma vegetação mais rala, interrompida por algumas plantações de mandioca e milho. De tempos em tempos, algum lagarto atravessava o meu caminho. Fui visto de longe pelos índios, de forma que pude perceber algum movimento entre eles, que pareciam conversar e apontar para mim.
Ao chegar, fui bem recebido. A aldeia era muito diferente daquela que eu imaginara. Não havia ocas, tabas, mas casas simples de camponeses daquela região. Isto é, casas de adobe, cobertas de folhas de coco babaçu. Os índios também não andavam nus, mas vestidos como camponeses. A única diferença que se podia notar era um pano que as mulheres estendiam logo abaixo dos seios e ali punham o bebê. Diferente das índias bolivianas, que põem seus pequenos num pano amarrado às costas. As que eu via o faziam na frente.
Perguntaram se eu havia vindo comprar djamba, temperahi, maconha. Respondi que não, que eu não usava drogas. O que parecia ser o cacique me convidou para ir a uma das casas. Era uma casa como as outras, mas tinha uma especie de pátio, coberto de folhagem, onde as mulheres estavam fazendo farinha de mandioca. Era uma labuta curiosa, que meus olhos excessivamente urbanos não conseguiam entender bem.
No meio do recinto, havia uma grande panela de barro posta sobre uma espécie de fogão também de barro. Estava em cozimento.
Sentei-me no chão com eles. Foram chegando mais e mais índios. Um e outro apertava um baseado em folha de jornal. Eram cigarros gigantes, que eles acendiam e fumavam.
Ficamos sentados em torno da grande panela. Eles iam fumando e desandavam a rir. Na verdade, eu havia notado que eles eram pessoas muito quietas, pareciam tímidos ou sombrios. No entanto, ali, sob o efeito da djamba, disparavam a falar e rir. É como se cada índio fosse pelo menos dois.
Num certo momento, começaram a olhar para mim e a rir muito mais. Ao mesmo tempo, passaram a cuidar mais da panela fervente. E riam e olhavam para a ela; e falavam entre eles e olhavam para mim. Comecei a ficar com medo. E esse medo cresceu rapidamente e comecei a tremer. Tremia e olhava para a panela, tremia e olhava para eles. O pavor instaurou-se em mim implacavelmente e só vi uma solução: arrumei minha mochila nas costas e sai correndo pelo carreador, de volta à estrada. Atrás, meus anfitriões riam muito mais, estavam tomados por um riso que até hoje ainda creio ouvir.

VII

Naquele dia, ainda andei muito. Não consegui nenhuma carona e acabei dormindo numa roça de mandioca, numa espécie de clareira. Era perigoso, mas foi o que encontrei.
No dia seguinte, peguei uma carona logo depois de acordar. Era na carroceria de um caminhão, mas vazia, sem nenhuma carga além de mim. Levou-me para bem longe. Fiquei umas cinco horas naquele caminhão. Quando desci, finalmente, estava num posto bem grande, de uma rodovia pavimentada. Já não havia mata; o que cercava essa estrada eram campos e pastagens. Eu sabia no entanto que mais à frente uma nova mata, muito mais imponente, iria surgir. Era a entrada da Amazônia.
Entrei no restaurante do posto. Havia muita gente e se podia ouvir o burburinho das conversas. Eu não podia comprar nada, nem um café; teria que pedir que alguém me pagasse alguma coisa. Hoje, quando penso, me sinto humilhado, mas era o que eu podia fazer. Acerquei-me ao balcão do bar interno e pedi que um dos fregueses que aí estavam tomando algo me pagasse um pão. Creio ter sido bastante educado, pois, me pagou um pão com manteiga e uma coca-cola. Conversei um pouco com ele. Disse-me que aquela estrada, depois de uma certa altura, se bifurcava. Um dos ramos ia até o mar e o outro penetrava floresta adentro até um ponto em que acabava e, para ir mais além, era preciso tomar um barco chamado gaiola, uma grande embarcação, ou até mesmo uma canoa.
Fui para a estrada. Não foi difícil pegar uma nova carona, que me levou até a bifurcação. Tomei, então, a estrada para o litoral e fui andando. Fui fazendo o sinal de carona para todos indiscriminadamente. Parou um caminhão e o motorista avisou que não ia longe. Mesmo assim, subi na carroceria e, em meia hora ou um pouco mais, estava em outro posto de gasolina.
Desci do caminhão, vi alguns carros estacionados e comecei a pedir carona para cada motorista que entrava em seu veículo para partir. Foi em vão. Um homem se aproximou; identificou-se como gerente e me mandou sair. Encontraria outro posto. Saí. Pus-me em marcha pela estrada e em uma hora de caminhada dei de frente com outro posto.
Os postos no interior do Brasil são também restaurantes, borracharias, hotéis e puteiros. Era hora do almoço. Tocava Vicente Celestino na vitrola. Que bom barítono ele era! Sua voz enchia o restaurante.
Não havia clientes. Veio uma puta que claramente gostou de mim. Perguntou se eu queria comer. Me deu um prato com comida. Passava, se debruçava sobre mim, se oferecia, mas eu não podia entender, embora entendesse. Eu tinha vontade de ficar um pouco com ela, mas havia um acanhamento: eu ainda pensava em Andréia, apesar de tudo. E a moça perguntava se eu estava gostando da música que tocava.
O prato de comida era muito bom e ela e a patroa do restaurante se esmeravam em me atender.
Chamou para dançar. Não fui. Disse qualquer coisa. Falou para a dona do bar que ia pagar o meu prato. Era uma cena muito agradável. Tive a nítida sensação de que a sorte ia mudar.
Alguns instantes depois, parou uma camionete no posto e um de seus ocupantes desceu, deu instruções ao frentista e veio para o restaurante. Era alguém dali mesmo, da região. Jovem, de bigode, vestido de jeans, chapéu. Falou com a patroa e mandou chamar alguém.
Enquanto isso, Vicente Celestino continuava a encher o ambiente com sua voz. A moça me olhava como uma ternura de mãe e mulher e a patroa havia ido ao fundo para chamar alguém, tal como o homem de jeans e chapéu havia pedido.
Acudiu, então, um senhor negro com uma criança no colo. Devia ser seu neto. Postou-se logo ali na minha frente e começou a conversar com o rapaz que o mandara chamar. Eu não compreendia o teor da conversa, pois não entendia o sotaque daquela região. Na verdade, não estava interessado. Meu interesse se resumia à comida e aos olhares da moça.
E os dois homens conversavam. Eu comia. A moça me olhava.
Eu não entendia a conversa, mas percebia que o tom estava subindo. Havia uma tensão em barítono.
Vicente Celestino continuava com sua voz potente. Um dos homens, o jovem de jeans e chapéu, falava cada vez mais alto. Tinha os olhos furiosos. Quando sua fala alcançou um tom que não podia ser ignorado, os gestos eram de ameaça. Eram. De que contas estariam tratando?
A patroa, então, presa de certa angústia, fechou a registradora e se dirigiu ao jovem: — você não vê que ele está com a criança no colo? Vai pra casa. Para com isso! — mas ninguém parava e a moça me olhava como que me cobrindo com suas asas. A tensão no ar era mais forte que Vicente Celestino.
Olhei meu prato, voltei a olhar os dois homens… num instante, o jovem desfechou um soco no negro. Um pouco de sangue veio parar justamente na mesa em que eu estava comendo. Não atingiu o meu prato, mas eu me vi na pressa de comer tudo logo.
O senhor negro com a criança, sangrava um pouco no nariz e havia sido atirado contra a parede pela força do soco, mas não derrubara o bebê, que agora chorava aos berros. A patroa também gritava. Era um pavor generalizado. Era uma cena difícil. Não conseguia captá-la muito bem. Seus elementos fugiam-me confusos.
O homem com o bebê, pois, recuperando-se do soco, correu para dentro das dependências internas. Talvez buscasse uma arma: uma faca, na cozinha, ou um revólver, no quarto. O jovem agressor, muito possivelmente prevendo essa eventualidade, lançou-se atrás dele. E lá dentro foi uma gritaria infernal.
Nada vi. Pensei nos grunhidos de um porco ao ser morto https://youtu.be/dnsrEvR6-uc . A moça que me olhava me chamou com gestos fortes. Segui-a. Levou-me a um quartinho fora. Era meio longe do restaurante, mas eu ainda ouvia os gritos e o disco, que se misturavam. Ela, então, abraçou-me, beijou-me na boca e me deu dinheiro. Vai, disse, some daqui que a polícia vai vir num instante.
Tentei corresponder ao beijo da melhor maneira possível, mas só sentia gosto de cuspe. Peguei o dinheiro e fui. Fui caminhando. Onde teria outro posto? A estrada estava vazia. Não havia carros, nem pessoas. Dos dois lados havia mata fechada – mata amazônica – que dava um contorno à estrada recém construída. Era uma mata muito mais alta e mais densa que aquela na terra dos índios. Não havia asfalto, era terra batida e havia animais mortos, principalmente cobras, atropeladas pelos poucos carros e caminhões que ali teriam passado recentemente ou não. Então, eu senti medo novamente.
Não sei por que, vem-me agora uma frase esquemática à cabeça. Vem-me como um corpo estranho e hostil: a culpa é a vingança dos mortos”

VIII

Segui caminhando e o fiz durante muito tempo. Não havia movimento, quase não passavam carros e caminhões. Nenhuma carona.
Havia um estranho barulho na mata. Era uma espécie de fiu-fiu, desses que os desavisados assobiam nas ruas para as mulheres. Demorei para perceber que era um pássaro.
A noite chegou e eu ainda caminhava. Havia lua e isso me me consolava.
Continuei caminhando.
Em torno de umas nove horas, vi luzes. Andei e encontrei um posto de gasolina. Era pequeno, a luz era de candeeiro e já não havia movimento. Veio me atender um rapaz que fazia as vezes de frentista, gerente e único funcionário. Foi muito gentil. Disse-me que não me preocupasse, que podia dormir no posto. Pôs-me à disposição uma rede velha no mesmo quarto em que ele dormia. Contou-me muitas coisas de sua cidade. Vinha do sul do país. Dera muitos golpes comerciais e não pagara dívidas e não lhe passou outra ideia senão fugir e se refugiar ali na borda daquela floresta.
No final da conversa, ele elogiou o medalhão de couro que eu levava no peito, com o símbolo hippie da paz, e que havia tirado para dormir. Quando acordei, o medalhão não estava mais lá. Era o preço. Achei interessante que ele preferiu me roubar do que pedir ou comprar. Era a sua forma de ser no mundo, para usar um chavão. “Paguei” sem problemas.
Nessa época, eu não havia lido Jack Kerouack, o autor franco-canadense-americano que foi um dos pioneiros da viagem-de-carona-atravessando-o-país e do movimento beatnik. Portanto, eu não me sentia um Jack Kerouac. Queria me sentir um Macunaíma, o herói sem nenhum caráter, cujas peripécias se espalhavam por todo o país imaginário de Mário de Andrade, mas me faltava alegria. A falta de alegria é uma carga muito cara e pesada que se tem que transportar sem recuo.
Fui para a estrada e peguei carona com um carro. Foi uma das poucas vezes, nessa vida, em que fui tão confortavelmente transportado. Conversei muito com o motorista. Com isso “pagava” a viagem. Era um veterinário que frequentava as fazendas da região. Falou de morte. Contou que os fazendeiros pagavam policiais e capangas para matar os desafetos. Matar também é uma arte e muitas vezes é um gozo. Lembrei-me então do pastor….
Três horas depois chegamos, cheguei, à capital da Amazônia. A mata já havia sido novamente substituída por pastos e estávamos na entrada da cidade. Ainda havia alguns quilômetros para entrar no perímetro urbano. À frente havia um posto de pedágios.
– Depois desse posto, falta pouco, disse o motorista.
Chegamos ao posto, o generoso motorista pagou-o e continuamos. Alguns minutos depois, ao nos aproximarmos de um posto da polícia rodoviária federal, fomos parados. Um policial inclinando-se apoiou-se na porta do lado do motorista e o outro na do meu lado. O que estava do lado do motorista debruçou-se sobre a janela do carro e dirigiu-se a mim falando de um modo um tanto rude:
– VOCÊ QUE É FULANO DE TAL?
– Sim, senhor, sou eu.

– ENTÃO DESCE LOGO, QUE É COM VOCÊ.
Abri a porta do carro e desci.
Estava perplexo, aturdido. O guarda que estava à porta do carro do meu lado pegou-me pelo braço e me levou… Naquela hora, pensei algo que até agora em todo esse périplo e inclusive na igreja, eu não havia perguntado: Deus existia?

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