Fernando Andrade -) De uma palavra semanticamente passional como devoro-te, na conjunção carnal, para uma linha de deglutir a cultura brasileira desde os índios. Na nossa formação desde Caetano, vamos comer, nós somos canibais de estética, cultura, e informações. Comente.
Evaldo Balbino: De fato, Caetano e todo o movimento tropicalista revigoraram e até mesmo ampliaram os significados de devoração, sexual e culturalmente. Lembrando que sexo e sexualidade, além dos aspectos biológicos, carregam consigo também os elementos culturais. A ideia de que somos canibais, antropofágicos, de que deglutimos estéticas, culturas, informações… essa ideia já estava presente, como poética e como pensamento teórico, no fazer artístico e intelectual de Oswald de Andrade. Essa ideia foi se aguçando com o tempo, e a Tropicália a reforçou e a ressignificou, na segunda metade dos anos de 1960, propondo reinterpretações do Brasil, promovendo redescobertas das nossas realidades, seus valores, símbolos nacionais esquecidos, temas marginalizados. Nesse movimento de atualização, a Tropicália incorporou elementos que vinham de fora em diálogo com a indústria cultural da época. Incorporação deglutidora. No meu livro “Devoro-te”, busco todos os sentidos possíveis, desde o ato canibal (antropofágico), passando pela conotação erótico-sexual, e abarcando as polifonias de que nossos discursos se constituem e que, portanto, nós mesmos nos constituímos.
Fernando Andrade -) A palavra aglutinação é muito próxima da deglutição. Mas embora uma seja simbiótica, a outra pode ter a ideia de violência, posse, invasão. O ato de canibalizar é um ato violento e impositivo, pensando nos índios, com a colonização portuguesa ou espanhola. Fale disso.
Evaldo Balbino: Exatamente. Se existe um caráter simbiótico na deglutição entendida aqui culturalmente, no sentido de agregação, também existe o movimento de suplementação, nos termos de Jacques Derrida. Sendo assim, a deglutição cultural inscreve uma diferença, pois, muito mais do que complementar, ela também suplementa, instaura um a mais, um devir, um outro. E sempre um outro que aceita o aglutinado, mas que também o rejeita, num movimento paradoxal de aproximação e de distanciamento. Pensando a devoração como processo, o que se produz continuamente é o mesmo e o outro que, juntos, são sempre um terceiro. E assim sucessivamente. Para além das aproximações e dos distanciamentos (paráfrases e paródias, respectivamente) em termos intertextuais, devemos considerar também a violência, a invasão, a colonização. O meu livro discute muito isso, poeticamente, num viés crítico, por ser esse viés desconstrutor e questionador.
Fernando Andrade -) A semana da arte moderna de 22 é um dos vários motivos para seus poemas. Como você aglutinou a estética para seu livro?
Evaldo Balbino: A estética foi aglutinada justamente tendo a Semana de Arte Moderna como centro. No entanto, não deixei de buscar outros movimentos em outras localidades que não a Pauliceia de Mário de Andrade. Assim dialoguei com as vanguardas europeias e com diferentes movimentos intelectuais e literários em fermentação pelo Brasil a partir dos anos de 1920. Meu livro é dividido em partes, sendo cada uma delas montada em torno de possíveis sentidos para a palavra devoração. Para as partes, portanto, surgem títulos como “Como era gostoso Lavoisier”, “Orgia”, “Troca-troca”, “Que nem”, “Ladrão de palavras”.
Fernando Andrade -) Como a política que é um ato de alteridade sobre trocas e parcerias pode ter um cunho de posse, de comer as riquezas de outros lugares. A política está nesta cultura antropofágica. Fale disso.
Evaldo Balbino: Tudo em nossa vida é político. Escrever, então, nem se fala! Quando pensamos, agimos, falamos, escrevemos, estamos nos apropriando de símbolos e discursos, e os reconstruímos. Destarte, em tudo o que fazemos há trocas, parcerias. Comemos e somos comidos. Tomamos posse e somos possuídos. Lembro aqui o famoso ensaio de Harold Bloom que nos fala da angústia da influência. Nos meus livros, entretanto, faço questão de explicitar diálogos com outros escritores, canônicos ou não, clássicos ou contemporâneos. Não tenho medo das influências, nem desejo superá-las. Pelo contrário: elas me são terreno fértil para eu plantar meus rebentos. Gosto do diálogo e do dialogismo. Outras peças de arte alimentam as minhas peças. Me sinto dentro de uma confraria na qual me aproximo e me distancio de confrades e confreiras. Somos uma turma imensa nos abraçando.
Evaldo Balbino
Universidade Federal de Minas Gerais
Vice-Diretor do Centro Pedagógico da UFMG
Presidente da Academia de Letras de São João del-Rei
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