Fernando Andrade entrevista o escritor Renato Muniz

Renata Muniz as voltas que a vida dá penalux - Fernando Andrade entrevista o escritor Renato Muniz

 
 
 
 
 
 

Fernando Andrade) Você tem um ótimo senso de observação sobre eventos e fatos. Como esta questão passa para a criação?

Renato Muniz – Embora não sendo propriamente um “roceiro” — descartando qualquer sentido pejorativo aqui —, passei boa parte da minha infância no meio rural. Lá, se você não queria se dar mal, tinha de assuntar os arredores, observar os fenômenos físicos, tais como a ocorrência de chuva, o frio, a vegetação e os ritmos ditados pelas determinações sazonais. E matutar sobre as relações sociais, as complexas relações sociais, muitas vezes dissimuladas, obscuras, contraditórias. Depois, ao escolher o curso superior, resolvi estudar Geografia, e uma das coisas que aprendi a fazer foi desenvolver um olhar voltado à observação do território, da paisagem, mas, principalmente, no meu caso, à investigação das questões sociais, econômicas e históricas, o que me ajudou a aperfeiçoar o olhar. Finalmente, como leitor, sempre prestei muita atenção à escrita, ao enredo, à construção da história, à elaboração das personagens. Isso vai desembocar diretamente na minha escrita. Nos meus textos, muita coisa é ficção, é criação, mas acho que tudo se mistura e, quando a memória falha, a gente inventa.

Fernando Andrade) ) A leitura é um dos seus motes favoritos. Como leitor, o que te faz se aproximar da escrita da crônica? Quais as semelhanças entre ser leitor e ser cronista?

Renato Muniz – Tive a sorte de ter pais que gostavam de ler, admiravam livros e frequentavam atividades artísticas e culturais. E eles me estimularam nesta direção. Quando alcancei certa autonomia intelectual, achei que, tão importante como me encantar e me emocionar com as histórias, era preciso agir, colocar em prática o que eu encontrava nos livros. É a velha história: juntar a teoria à prática. Uma das questões envolvidas nesse processo é descobrir como a leitura se esparrama e se insere na vida das pessoas, como se mescla com nossas vivências. Nós não passamos incólumes pelas leituras que fazemos.

Da leitura à escrita foi um passo. Comecei por escrever poesia, mas textos adolescentes, influenciado por Manuel Bandeira, Carlos Drummond, Neruda e Maiakovski. Mudei de ares e fui procurar outras formas de expressão. Dei um pulo e cheguei aos textos acadêmicos, ao rigor exigido nos trabalhos escolares. O curioso é que, no exercício da docência, fui instigado a produzir uma literatura mais descompromissada com a precisão científica. E cheguei à crônica. Percebi que era necessário estabelecer um diálogo com os estudantes para além da sala de aula. Foi o que fiz, sem esquecer o vínculo entre o leitor e a produção literária. O convite feito para “bater ponto” com frequência semanal nas páginas de jornais e revistas conduziu o texto à leveza, à ironia, à maior liberdade ao fazer a leitura do mundo que nos cerca. O texto se consolidou atrevido, exigente, irrequieto. Percebi que a crônica nos relaxa, nos diverte, nos faz pensar com descontração, com desembaraço, e enveredei por ela. A crônica deve estimular a leitura e, em muitas ocasiões, ela dá um impulso em direção à literatura em geral.

Fernando Andrade)  Queria que você falasse da linguagem adotada por você, clara e direta. Comente isso no contexto da crônica.

Renato Muniz – Nos anos 1970, em bairros da periferia da cidade de São Paulo, me engajei como professor em atividades de alfabetização de adultos e no ensino fundamental. A carência de textos, de textos que não conduzissem à subordinação, à servidão, e que pudessem ser lidos por pessoas com histórias de vida diversas, exigiu a produção dos meus próprios textos. Levei vários anos para desenvolver uma linguagem didática, clara, acessível aos grupos espoliados da prática da leitura desde os primeiros anos de vida.

Difícil, e às vezes desnecessário, foi caminhar noutra direção, em termos da escrita — as “manias de professor” já estavam incrustadas no texto. No caso da crônica, isso talvez seja um predicado, uma vantagem. A não ser que esteja enganado, ainda não me livrei do hábito adquirido. Vou levando, tentando não deixar o simples se transformar em simplório, tentando não perder a ternura, a naturalidade, a ironia e as demais particularidades da crônica. Mas sou um aprendiz.

Fernando Andrade) O cotidiano, a vida, costuma ser um objeto de estudo da crônica. Como você trabalha isso na sua escrita?

Renato Muniz – Embora saiba que a crônica tem suas especificidades e se distingue do conto, por exemplo, não conheço uma tipologia definitiva, se é que existe, deste gênero textual. Uma coisa todo estudioso do assunto reconhece: a crônica tem uma ligação umbilical com o cotidiano. Depois disso, há um mundo a descobrir. Tem crônica em primeira pessoa, tem crônica saudosista, crítica, ácida, humorística, romântica, irônica, gastronômica, política e por aí afora. O que sei é que a crônica tem fortes ligações com o imediato, com fatos momentâneos, com a crista da onda, sem desprezar o passado e a saudade. Ou seja, para escrever crônicas, é preciso estar atento ao noticiário, à comunidade, ao entorno. É preciso um olhar atento aos detalhes, às minúcias do dia a dia. Mas é bom saber que o texto ligeiro é global e local, parodiando um antigo mantra ambientalista. Como eu trabalho isso? Deixo fluir.

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