Fernando Andrade – Teu romance tem uma densidade psicológica onde os personagens possuem bastante tridimensionalidade. Como pensou estes personagens?
João Carlos Leite – Meus personagens não são previamente planejados. O protagonista nasce de uma cena, de um conflito, mas não nasce completo. Num momento inicial, tenho somente uma ideia das suas características físicas e psicológicas. Outros traços, como a sociologia, serão evidenciados pelas situações que ocorrerem durante o desenvolvimento da trama. Os demais personagens surgem em decorrência dessa primeira cena e terão os aspectos necessários para interagir com o personagem principal. Alguns que não seriam tão importantes, acabam ganhando uma relevância acima do esperado no desenrolar da história, portanto, tendo a tridimensionalidade mais explorada.
Fernando Andrade – A trama é muito bem fundamentada em relações sociais. Como refletiu a trama com estas intrincadas acuidades sociais. Comente.
João Carlos Leite – A hipocrisia está bastante enraizada em todas as camadas da sociedade; basta ver o dito cidadão de bem, que se julga acima das leis e acredita que estas servem apenas para o cidadão comum. Somem-se a isso as milícias, mulheres assassinadas somente pela sua condição feminina, a imprensa em conluio com a política, e o jogo dos poderosos.
Embora as mazelas estejam presentes no dia a dia da imensa maioria, penso que o leitor não quer abrir um livro e ver ali estampado a cópia de um noticiário. Assim, procurei abordar esses temas de maneira ora sutil, ora mais contundente e, algumas vezes, até caricata.
Além de que tais elementos servem apenas como pano de fundo para que os personagens possam realizar as suas jornadas. A luta pela sobrevivência numa cidade desconhecida, a amizade, a descoberta do amor, a conquista dos sonhos, a música: estes, sim, são os temas do microcosmo do protagonista, bastante perceptíveis no romance.
Fernando Andrade – Vi uma influência da literatura do século dezoito e dezenove, onde a preocupação social aflora no romance. Tem este espectro?
João Carlos Leite – A não ser que seja imprescindível, procuro não especificar um lugar ou um determinado período histórico nos meus romances. Mesmo se tratando de uma ficção e os temas explorados na trama sendo atemporais, é impossível ficar alheio ao que acontece ao redor enquanto a história se desenvolve. Política, pandemia, guerras, desemprego, violência, tudo isso afeta a minha escrita e vai aparecer de uma forma ou outra.
Fernando Andrade – Como você parte para criação de um enredo, uma história. O que você pensa primeiro.
João Carlos Leite – Na maioria dos meus textos o enredo parte de uma cena ou até mesmo de uma única frase. Depois que o protagonista é colocado em uma determinada situação, é como se acontecesse uma explosão e, a partir desse ponto, a trama se expande em todas as direções possíveis. Algumas alternativas ganham força e são exploradas, outras simplesmente desaparecem.
Os pais, a vida escolar, a velhice, os medos, os anseios, os amores, a morte, tudo acontece em decorrência da primeira cena. Nesse instante, tenho apenas um vislumbre de como a história começa e de como vai terminar. Todos os conflitos, desde a infância até aquela cena e daquela cena até a última página, serão desenvolvidos no decorrer da escrita.
Concluindo, eu diria que, como escritor, por vezes me surpreendo ‒ tanto quanto o leitor ‒ com a jornada que o meu protagonista realiza. Mas talvez esteja aí o maior prazer da escrita: se deixar surpreender, se deixar levar pelas inúmeras possibilidades do mundo ficcional. Nada contra a escrita toda planejada, apenas eu não consigo criar assim.
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