Fantasmagorias Tropicais: resenha de Vinil Verde, Eletrodoméstica, Noite de sexta, manhã de sábado e Recife Frio, de Kleber Mendonça Filho.

Foto filme 2 - Fantasmagorias Tropicais: resenha de Vinil Verde, Eletrodoméstica, Noite de sexta, manhã de sábado e Recife Frio, de Kleber Mendonça Filho.

 
 
 
 

por Guilherme Preger 1 .

Quem se lembra da última cena de Retratos Fantasmas (2023), de Kleber Mendonça Filho, não irá se surpreender com os quatro filmes de curta-metragem disponibilizados recentemente pela plataforma MUBI. No filme mais recente, Kleber ele mesmo entra num táxi (uber) e dialoga com o motorista. Mas logo este desaparece e o carro parece ser guiado por um motorista-fantasma. A função principal da cena, no entanto, é representar a indecisão entre realidade e ficção, o traçado equívoco dessa distinção, que é também aquela entre o verossímil e o inverossímil. De fato, enquanto o automóvel circula entre as ruas da cidade, mostrando sua arquitetura desumana, onde se enfileiram dezenas de farmácias, o realismo documental do trajeto se torna irreal (“para quê tanta farmácia, meu deus”?, somos tentados a perguntar), enquanto o desaparecimento do motorista é um retrato fiel (ou verossímil) da invisibilidade dessa categoria de trabalhadores.

Foto filme 2 300x166 - Fantasmagorias Tropicais: resenha de Vinil Verde, Eletrodoméstica, Noite de sexta, manhã de sábado e Recife Frio, de Kleber Mendonça Filho.

Todo Retratos Fantasmas gira em torno das reminiscências dos cinemas de rua de Recife, outrora grandiosos, e de sua própria casa no bairro de Setúbal, onde se deu a elaboração de muitos de seus filmes. É o tema da arquitetura das salas públicas de cinema e de sua casa particular que está em jogo neste filme, que inicialmente se propõe como documentário. A preocupação com a arquitetura é uma constante nos longas de Kleber, notadamente nos premiados O Som ao Redor (2012) e Aquarius (2016), o primeiro filmado na mesma locação da residência de Kleber abordada em Retratos. Mas neste filme contemporâneo, a arquitetura serve de contorno aos fantasmas da memória, assim como o documentário é o enquadramento cinematográfico de suas fabulações narradas em voice over. Essas fabulações, de caráter sentimental, trabalham com a coexistência de mundos díspares, entre a imaginação popular e a especulação imobiliária. A irracionalidade desta última contrasta com a exuberância tropical da primeira, uma marca da sociedade recifense.
A fantasmagoria resultante da decadência dos cinemas “analógicos” transborda para a ficcionalidade que invade (ou transgride) o proposto documentário, até culminar na última cena, fantasmagórica por si mesma. Ao mesmo tempo, também neste filme, é a memória da sua mãe, precocemente falecida, na sua fúria por transformações arquitetônicas da própria casa, que perturba e fantasmagoriza a criação de vários de seus filmes, sobretudo dos curtas.

Foto filme 1 300x169 - Fantasmagorias Tropicais: resenha de Vinil Verde, Eletrodoméstica, Noite de sexta, manhã de sábado e Recife Frio, de Kleber Mendonça Filho.
Essa fantasmagoria maternal está presente no curta Vinil Verde (2004), baseado no conto popular russo Luvas Verdes. A proibição imposta pela mãe para que sua filha nunca escute o vinil verde serve como um elemento disparador do desejo. A demanda funciona menos como um interdito e mais como um motor da curiosidade infantil. Cria-se assim, por parte da mãe e de sua filha, uma relação perversa que esconde ternura e sadismo. O curta- metragem é todo editado em stop motion, o que intensifica o clima fantasmático do roteiro.
No final, a filha herda a sina e os medos da mãe, assim como o próprio curta, rodado na mesma casa do diretor, recolhe as reminiscências de sua mãe ou da ausência paterna (em  Retratos, o diretor explica que eles foram morar na casa após a separação dos pais). A referência ao vinil analógico infantil é um recurso de anacronismo que produz nostalgia e estranheza. Esta referência remete ao enredo calcado no fantástico popular, cujo suspense angustiante é uma estratégia narrativa. É precisamente essa angústia ficcional trazida pelo conto popular que é traduzida pela técnica de stop motion e faz a mediação entre realidade e imaginário, na vida tensa da Recife assombrada pela violência urbana, sendo esta última o tema principal de O Som ao Redor.
Eletrodoméstica (2006) é um ensaio para este último filme. O curta elabora, na mesma casa familiar de Kleber, a vida de uma dona de casa nos seus fatigantes afazeres domésticos, cercada de apetrechos tecnológicos. O título irônico conjuga a incorporação da dona de casa aos eletrodomésticos, e também a transformação da mãe em doméstica, sobretudo de seus filhos. Há, portanto, uma espécie de simbiose entre a mulher e os eletrônicos, que se tornam inconfundíveis no cotidiano doméstico da casa. Há ainda uma cumplicidade entre os apetrechos e o vício pelo fumo da mãe que é repreendida pela filha (a mesma menina atriz de Vinil Verde). No entanto, a certa altura, a simbiose “eletrodoméstica” torna possível a experiência do gozo sexual, que acaba por distinguir entre a vida maternal familiar e a vida sexual da mulher. Neste curta há, portanto, um interessante experimento ficcional sobre o tema da antropologia ciborgue periférica, com os acoplamentos existenciais entre a máquina e o corpo, e entre funções e papéis sociais. O gozo corta a relação domesticada da mãe/mulher. Mas o que o curta de fato traça é outra fronteira ficcional entre os interiores dos espaços de convivência familiar fechados (“domesticados”) de classe média e o mundo social mais abrangente que aparece de forma ameaçadora (“selvagem”), tema de longas posteriores de Kleber.
Noite de sexta, manhã de sábado (2006) destoa dessa coleção relançada, pois não é irônico. É antes um relato sentimental da distância física e emocional entre um jovem casal. O rapaz circula em Recife ao anoitecer e a moça em Kiev, já de manhã. O casal vive a dolorosa experiência da separação física, que é cortada pelo telefonema e pelos aparelhos celulares que ambos utilizam enquanto deambulam pelas cidades. Há o jogo entre a simultaneidade da comunicação e a diacronia da diferença espaço-temporal, que serve de alegoria para a emotividade de cada um dos personagens: o rapaz num estado melancólico e a moça, que não fala português (ambos se comunicam em inglês) e vive a experiência de algum recomeço. O experimento estético é obtido pelo efeito da montagem: o que parece ser uma conversa simultânea, que vence a barreira espaço-temporal, é antes fruto da ilusão da montagem cinematográfica. Tanto o aparelho celular, que permite a conversa diegética do casal, quanto a edição, que simula uma proximidade inexistente, são recursos técnicos que ficcionalmente anulam o distanciamento do par de jovens. Mas o curta conclui que a proximidade fictícia não suprime o distanciamento real. Assim, mais uma vez é a fronteira entre realidade e imaginário que está em causa.
O humor e a ironia retornam em Recife Frio (2009). Um efeito de mudança climática faz com que a capital pernambucana seja envolvida permanentemente por nuvens densas e a cidade se resfria a baixas temperaturas. A cidade antes tropical precisa agora se cobrir com vestimentas pesadas. O curta se apresenta inicialmente como uma ficção científica distópica (“daqui a alguns anos”). É na sua construção formal, que lembra outro famoso curta, Ilha das flores, de Jorge Furtado (1989), que esta obra mais se utiliza da ironia, ou mesmo do pastiche, pois simula uma reportagem documental narrada por um apresentador de língua espanhola. A suposta reportagem faz entrevistas com os habitantes da cidade para saber como estão lidando com a transformação climática. Algumas dessas entrevistas são com personagens conhecidos, como os repentistas Pinto e Patativa que cantam um repente sobre a nova realidade climática da cidade; ou Antonio Paulo, um folclórico papai- noel recifense que agora se vê vingado em seu sofrimento por usar as roupas nórdicas de seu personagem natalino importado; ou Lia de Itamaracá, a grande figura da canção popular, que faz uma ciranda com jovens encasacados; ou ainda um dono de pousada francês que explica em sua língua natal como está perdendo clientes, pois os estrangeiros não mais se interessam por uma Recife gelada. Todos esses depoimentos obtidos dentro da fórmula da reportagem, com imagens em P & B de tempos nublados e chuvosos, constroem um enredo de verossimilhança. O que está em causa, mais uma vez, é a fronteira tênue entre realidade e imaginário. O narrador estrangeiro e os depoimentos credibilizam a ficção. Ao mesmo tempo, a transformação no clima ressoa com a catástrofe ecológica da invasão das praias recifenses por tubarões, que inviabilizou o banho em suas águas tropicais. É essa fantasmagoria ecológica que Recife frio traz à cena, junto com o questionamento de sua própria arquitetura brutal, que não admite espaços de acolhimento para os desvalidos, agora fustigados pelo frio.
Assim, todos esses curta-metragens são uma amostra do jogo que o cinema de Kléber faz com o paradoxo da realidade periférica e tropical que se aproxima de uma irrealidade fabulosa. Esse paradoxo gera uma fantasmagoria própria (ou imprópria) que explodiu na violência de Bacurau (2019). Neste filme, que conjuga ficção científica, antropofagia tropical, jogo e magia, a irrealidade ficcional traz um real mais traumático. A fagulha liberada pelo choque entre realidade e irrealidade é a fantasmagoria que serve de material de trabalho para o diretor pernambucano. Não se pode viver no Brasil contemporâneo sem entender como lidar com esses fantasmas cotidianos. Esses fantasmas estão soltos e não há como simplesmente exorcizá-los. Para além da estética, o cinema nos fornece meios cognitivos para realizar esta tarefa.

1 Guilherme Preger (Mastodon: @ gfpreger @gfpreger@piupiupiu.como.br) é engenheiro e doutor em
Teoria da Literatura (UERJ). É autor de Capoeiragem (7 Letras, 2003), Extrema Lírica (8 e meio, 20140 e Fábulas da Ciência (Gramma, 2021). É organizador do coletivo literário Clube da Leitura Raiz (https://oclubedaleitura.wordpress.com/). Escreve a coluna Drops da Sétima Arte sobre cinema para o site Diversos Afins (https://diversosafins.com.br/). É autor dos blogs Fabulação Especulativa (gfpreger.medium.com) e Semiopolítica (sociopolítica.tumblr.com).

Please follow and like us:
Be the first to comment

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

Social media & sharing icons powered by UltimatelySocial