Fernando Andrade – Pressupõe que no ensaio ocorra uma distância entre o autor e seu assunto. No seu livro você cola aos seus temas como algo biografado, mas sem ser algo tão íntimo seu, certo. Vida este objeto nosso, brasileiro, cultural, canibalista, seus ensaios estão tão entremeados à poética, ao teatro, cinema. Fale um pouco desta hibridização de gêneros.
Marcelo Ariel: Há a ideia de uma migração de gêneros entre os três livros que formam o livro, migração e diálogo, a dimensão aforística da crônica breve no primeiro livro dialoga com os ensaios dentro de alguns contos e existe um elemento ficcional na forma como o ensaio no final do livro é construído. Você fala em distanciamento. Mesmo na autobiografia e em seu subgênero a autoficção ocorre um distanciamento, me interessa ampliar e tornar cada vez mais contaminado ‘ de mundo’ esse espaço entre o sujeito e sua subjetividade, contaminar a memória com a duração pode ser uma via mais interessante de acesso ao mundo, me pergunto se não era esse o projeto proustiano, ler Proust tendo Bergson em mente pode ser uma chave menos falsa.
Nosso tempo opera uma constante confusão entre sujeito e subjetividade e tento em meu trabalho desfazer esse nó imaginário. Não acredito em gêneros fora da teoria dos conjuntos, para mim exceto as regiões do sujeito e da subjetividade, exceto estes dois desertos, tudo é entrelaçamento e mistura ou seja hibridismo, o hibridismo é quase um efeito das metamorfoses, você se refere ao Brasil em sua questão, o Brasil resiste e até ignora suas metamorfoses e paga um preço muito alto por essa fixação passiva em formas mortas de seu passado colonial, a subjetividade do Brasil é totalmente diversa de seu sujeito, as mutações da subjetividade iluminam e renovam o sujeito e não o oposto, não concebo a alteridade sem o hibridismo mutacional.
Considero tudo o que é referenciado como íntimo ou da intimidade, um equivoco derivado de projeções em sua maioria ilusórias e mistificadoras. A distância entre a BIOS e a bio é a mesma que existe entre a Terra e o Sol. A BIOS é híbrida, multifacetada, compõe a variação em movimento do que podemos chamar de ‘ nossa Amazônia de dentro’ e a bio, esse conjunto ficcional de organização das memórias do sujeito não dá conta de quase nada, é apenas um ponto de referência, uma porta de papel que dá para o oceano. Voltando ao hibridismo de gênero, não podemos perder de vista o que Bakhtin chamava de ‘ gêneros do discurso’ e o quanto isso está manifesto no meu livro, no fundo todos os gêneros são alterados pelas formas orais que são a destinação, fonte e devir do que chamamos de literário, qualquer pessoa que escreve está em luta contra a degradação da oralidade, para mim essa luta lentamente toma o aspecto de uma grande guerra cultural entre a leitura e as inúmeras limitações da sensibilidade e nessa guerra não existem mais fronteiras. Não sei se respondi de modo satisfatório sua questão, tentei dar conta das problematizações que a envolvem. Não se trata apenas da hibridização de gêneros mas de como as fronteiras entre eles ou é dissolvida em nome de uma consonância com a atualidade perene dos movimentos do mundo em suas metamorfoses e novas subjetividades ou a compartimentalização e guetoização dos saberes os torna parte da crescente degradação em curso, tanto da vida quanto do humano, sintoma do capitalístico, forma de organização antisocial dos agrupamentos humanos.
Fernando Andrade – A linguagem no seu livro seria para mim a grande ideia a desvelar, por trás de toda referência historiográfica que você adota. Parir pensamentos no sentido de gestá-los na modernidade das grandes obras. Comente.
Marcelo Ariel – O livro em questão é composto por três livros que se comunicam, se entrelaçam de forma sutil, havendo neles independente do gênero no qual se manifestam, perguntas escondidas e também um jogo de correspondências no qual as perguntas elaboradas por um conto no livro do meio são respondidas pelo ensaio no terceiro livro. As referências historiográficas não são mais importantes do que a tentativa de criação de conceitos poético-filosóficos, a contaminação da dimensão ficcional e imaginativa dentro do historiográfico foi algo que utilizei como forma de criar uma pergunta que esconde um conceito, por exemplo no conto O VÃO a substituição de Lula por Glauber no debate com Fernando Collor, há uma pergunta que é a mesma que Guattari faz para Lula em outro momento do mesmo conto, esse conto foi inspirado pelo quadro O JARDIM DAS DELÍCIAS de Bosch, essa é uma informação importante.
Fernando Andrade: O paradoxo do título sugere alguma conceituação dialética entre caos e criação, entre síntese e antítese. Fale disso.
Marcelo Ariel: Estamos sempre nos afastando para perto do amor e da morte.
Fernando Andrade: Lembro do verso do Itamar Assumpção, na sua canção Não há saídas, só há ruas, viadutos e avenidas. Na cultura nossa, na labuta diária da arte, este pensamento-verso faz sentido. Comente.
Marcelo Ariel: Itamar Assumpção depois de John Coltrane é uma das minhas maiores referências, mas há Carolina Maria de Jesus! Creio que a maior pensadora da cultura brasileira foi Carolina Maria de Jesus, quando escreveu que A FOME É AMARELA criou um conceito fundamental. Veja você se pegarmos a rua John Coltrane dobrarmos na Itamar Assumpção com a Cruz e Sousa vamos sair na Avenida Carolina Maria de Jesus esquina com a Vincent Van Gogh. Falando mais sério ainda, existe o mito da compreensibilidade e existe o mito da saída, tão oco e perigoso quanto o uso da palavra verdade que deveria ser escrita sempre entre aspas, a palavra verdade não é parte da realidade cada vez mais onírica do mundo. A “verdade” da economia versus a realidade da fome, a “verdade” da literatura versus a realidade dos abismos dialógicos. Em tudo o que faço sempre tomo partido da realidade dos abismos dialógicos. Há outros dois pensadores bastante ignorados no Brasil, o filósofo pernambucano Evaldo Coutinho, autor de O LUGAR DE TODOS OS LUGARES e o místico e poeta do Amazonas Vicente Franz Cecim, autor da espiralar saga VIAGEM A ANDARA, eles e Carolina pensaram os abismos dialógicos.
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