Fernando Andrade entrevista a poeta Maria Caú sobre o livro ‘Contra a Paixão’

Maria Caú - Fernando Andrade entrevista a poeta Maria Caú sobre o livro 'Contra a Paixão'
 
 
 

Fernando Andrade – Ao poeta cabe sublimar ideias e sentidos\significados, em poema. Na paixão a escrita cabe em quê. Lado irônico, satírico. Comente.

Maria Caú – Eu não acho que a paixão cabe na escrita, mas eu acho que a paixão da escrita é um motor muito importante para mim. Eu sempre escrevi para elaborar sobre sentimentos e situações difíceis, mas é impulso, não é terapia. Não acho que escrever seja uma terapia, mas acho que é impulso que te engaja e só por isso tem valor terapêutico em algum nível. Escrever me dá a pretensão de poder ver o que eu vivo de forma distanciada, analisar as experiências com alguma frieza, com um mínimo de pragmatismo. Eu sou uma pessoa muito cerebral e para mim é bem difícil me deixar guiar por sentimentos e não pela racionalidade, então este livro é também uma forma de me rebelar contra o domínio que a paixão romântica exerce sobre nós, a forma como teima em complicar os nossos planos. Com relação ao humor, eu sempre acreditei que a ironia e o humor são a única forma de vencer situações muito dolorosas ou absurdas; rir de uma coisa é diminuir o poder que ela exerce sobre nós.
Também acredito que era preciso falar do ridículo da paixão. As pessoas escrevem muito sobre a paixão, mas pouco se escreve sobre o lado ridículo de se apaixonar, sobre o absurdo que é acreditar que você precisa conquistar o objeto da sua paixão para que tudo na sua vida se encaixe. A gente sofre por amor com a intensidade com que sofre por uma morte e isso, em si, me parece completamente absurdo, o que não quer dizer que eu consigo me esquivar desse sentimento. As pessoas falam de paixão com uma certa solenidade, com uma gravidade da qual eu sempre desconfiei um pouco. E aí, quando me vi apaixonada e numa relação fracassada, me achei ridícula.
Acho que, antes de tudo, este livro parte deste ridículo, do ridículo da paixão e do ridículo da relação que eu vivi e das projeções que eu mesma criei.

Fernando Andrade – Esta que escreve é você, uma pessoa que vai muito além do personagem, estudando arquétipos de mulheres, experimentando a invenção e o fato de si. Fale um pouco sobre isso.

Maria Caú – “Contra a paixão” foi escrito enquanto eu estava vivendo as experiências que eu evoco ali, sem nenhum distanciamento, e é um livro em que eu me exponho bastante. Eu não tive a intenção de compor um libelo feminista ou fazer um comentário sobre a situação da mulher, mas, como feminista que sou, a ironia da situação em que eu me encontrava me levava naturalmente a alguns questionamentos. Eu, que nunca me interessei por homens em situações de poder, havia dado a um homem certo poder sobre mim, já que existe uma transferência de poder na paixão. Eu me sentia desempoderada, no sentido mais óbvio. Isso me parecia especialmente irônico por eu ser uma mulher bissexual e por eu entender que, no fundo, sou uma pessoa muito mais interessante do que aquele homem que era meu objeto de desejo e que, no fundo, não passava de uma invenção minha. Meu livro pode ser em algum nível feminista, mas não é um panfleto. Não é um livro de lacração, de forma alguma. É um livro de sobrevivência. A única coisa que eu de fato estudei para elaborá-lo foram os meus próprios sentimentos, tentando entender por que eu não conseguia sair da espiral da paixão, por que aquilo me engolfava sem parar. Ao mesmo tempo e contraditoriamente, era uma relação em que, quando estávamos juntos, eu exercia certo domínio sobre ele. Eu tinha a ilusão de dominar uma situação que me dominava.
E, para dominá-la de fato, eu a ficcionalizei.

Fernando Andrade-  O cinema deve para nossa mente subjetiva ser uma parte do inconsciente em imagens. O recalque pode ser também um instrumento tanto do poder das imagens como da força do símbolo de uma construção verbal. Fale sobre isso.

Maria Caú O cinema e a psicanálise nasceram praticamente juntos. Eu sou extremamente adepta dos dois. “Contra a paixão” tem muito desses dois universos. O recalque é com certeza uma coisa que me fascina, me fascina perceber em que nível as pessoas vivem achando que, se não lidarem com algo, aquilo vai deixar de existir e as formas como o que você tenta recalcar continua se manifestando. Homens são certamente o grupo menos aberto a lidar com os próprios traumas. Inclusive há uma série bastante brilhante que a Netflix acaba de lançar e que trata justamente desta questão: “Bebê Rena”. O meu muso do livro é certamente um cara muito cheio de traumas e recalques, um sujeito que viveu a vida inteira dentro de uma igreja evangélica e que saiu dessa igreja, mas não deixou de ter um pensamento dogmático sobre o mundo, que é herança desse passado religioso. Eu falo deste homem, um homem sem relações de amizade muito íntimas, que não se abre, que não reflete, que não tem uma relação minimamente saudável com a família e o trabalho e que acredita que pode seguir assim. Eu, infelizmente, sou um pé de cabra: eu só consigo ter relações profundas com quem se abre para mim. E os poetas, sim, tendem a transformar o recalque em versos, em imagens poéticas que às vezes nem sabemos de onde vieram, um pouco como sonhos. De qualquer forma, a gente se expõe muito. O impasse estava, assim, colocado. Rendeu um livro. Não poderia ter rendido uma relação duradoura. Mas rendeu um livro.

Fernando Andrade – Está para sair um livro pela Jorge Zahar com um título chamado ‘O homem não existe’. Pensei nesta abordagem quando li seu livro. Fale sobre os homens no seu livro. Explane.

Maria Caú – Muito embora ele seja contraditório e pareça muitos, só há um homem no meu livro de forma mais constante (aqui e ali aparecem outros como contraponto, mas são incursões breves). Um homem que eu me esforcei muito para conhecer, mas que era um homem muito fechado em si. Tivemos uma relação plena de contrastes, profunda e muito rasa ao mesmo tempo. E eu ainda assim não sei quem ele é. Talvez ele nunca tenha existido e eu o tenha inventado para poder escrever este livro. É algo em que eu penso às vezes e que me traz certa paz. Mas o livro está escrito e eu sinto que agora ele é, este homem que não existe, o mais concreto que ele jamais será. Eu não li este livro que você cita, mas entendi que ele desconstrói a ficção terrível que é a masculinidade. A masculinidade, como é a norma, e não seu oposto, é muito menos questionada, investigada, dissecada. A gente fala o tempo inteiro sobre ser mulher, nunca sobre ser homem, porque ser homem é o ideal passado em silêncio. O homem pelo qual eu me apaixonei era e é um homem que se encaixa muito mal no ideal do masculino e que ficou a vida inteira sofrendo para entrar nessa caixa. Mas um dia alguém chega, abre a caixa e você percebe que não quer sair dela. Isso aconteceu com ele. É uma grande, imensa tragédia quando a gente percebe que não somos da medida dos nossos desejos. O meu maior orgulho nesta relação foi, apesar de tudo, ter sido da medida dos meus. Espero que o livro expresse isso.

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