Fernando Andrade – A criação do universo, chamada simbolizada pelo ovo cósmico, tanto pode observar, um ato literário, como o surgimento da vida. No seu livro os poemas criam as variedades da criação em versos potenciais, com muita visualidade e melodia. Comente.
Nadja Rodrigues de Oliveira – É interessante você destacar o tema da criação como o fio com o qual eu costuro a escrita do livro. Sua observação é muito pertinente. Uma amiga escritora sensivelmente me disse que ele é uma espécie de cosmogonia. De fato, “Povoemas e outras nascentes” reúne poemas em torno do gestar, das potências do começo, dos nascimentos e dos estados germinativos, nos quais nos aproximamos também da sua membrana recôndita: dos fins, das quedas, da morte. Os poemas vêm a ser por meio desse fio de vida, versam a partir das forças geradoras da matéria, seja uma pedra, um ovo, um corpo, um poema. A presença profusa de imagens acontece nos poemas como rastro do meu processo criativo, um tanto associativo e próximo ao trabalho do sonho, onde há uma condensação de sentidos em cada elemento. Também percebo que trato a palavra como um átomo em movimento, como uma dança. Assim, a sonoridade delas participa bastante dos poemas. O último poema do livro (“eis o poema”) desliza bem nessa direção, aliás.
Fernando Andrade – Entrever as frestas é escrever por entre certas fendas onde o sentido nunca é literal mas figurado. Como criou esta estética de sua escrita. Fale disso.
Nadja Rodrigues de Oliveira – Acredito que essa estética advém de um estilo muito pessoal – estilo esse que, qual Manoel de Barros alertava, é estigma, força que deságua das minhas ancestralidades. Compreendo a escrita como um trabalho de furar o campo sabido, cavar caminhos por dentro das palavras e entre elas, revelando dobras e faces inexploradas. Quando escrevo, assumo uma posição porosa e precária. Tenho a fissura como um modo de ir, uma abertura para ser vitalizada pela intensidade da vida, o que envolve experimentar seu avesso. Escrever por entre fendas é colocar a palavra a serviço do que não se sabe, poder se espantar com o que emerge inadvertidamente. Desse modo, criei essa estética não com a razão, mas a partir do meu “minadouro sensual”. Ela é a minha forma de sentir e abrir sentidos no mundo. Escrevo por entre as coisas para tecer entremeios que germinam possibilidades inesgotáveis. Creio que é no terreno entre dentro e fora, no campo das fronteiras, que a figuração fervilha e brota. “Povoemas e outras nascentes” foi escrito qual um rio vem a ser a partir do lacrimal, se avolumou por meio do que escorre das fendas originárias, do fugidio umbigo do sonho, das frestas e das fissuras. É um livro povoado, nascente, ovo – a figuração por eclodir dentro da pedra da palavra.
Fernando Andrade – Alguns adotam a rima, outros preferem uma certa afinação interna entre o som e o sentido. Fale um pouco disso na sua poesia.
Nadja Rodrigues de Oliveira – Como sinalizei em momento anterior, percebo que trato as palavras como corpos sonoros e plásticos: eles são elásticos, com possibilidades de formar diferentes figuras a depender de como os posiciono. Caminho em direção à afinação interna, mas não tanto em busca por ajustar som e sentido. O que me agrada é afinar o som para ressoar vários sentidos. Escrevo como quem coreografa uma dança contemporânea. Isso envolve escutar os tônus das palavras, sentir os diálogos entre seus corpos, os contatos, os improvisos, como elas se chamam, como se repelem, como caem, como aderem, como deslizam, etc.
Fernando Andrade – Afinar o corpo não seria uma pergunta difícil, pois o corpo talvez não possa ser poetizado, será que pode, devido a falha, imperfeições, a poesia não seria um pouco isto, o erro, o equívoco. Explane.
Nadja Rodrigues de Oliveira – Acredito que o corpo possa sim ser poetizado: se o corpo é falho e a poesia é “falhar melhor” (brincando aqui com a célebre citação do Beckett), me parece que o corpo não só pode como precisa ser poetizado para ser suportado. Digo “poetizado” como ato de ser soprado pela poesia, de ser um corpo poiético, que recebeu o banho afetivo da linguagem e foi sonhado por quem veio antes – um corpo que precisa de condições fundamentais para ser humano, favorecidas por uma ação no mundo, ligada ao princípio gerador eterno. A poesia, enquanto poiesis, me parece ser essa ação. É necessário que o corpo não seja só corpo, mas também um corpo simbólico e um corpo enlaçado. É necessário ser um corpo criado e que cria. É por meio do que escapa, do que falta, que se continua. A afinação não é ação que se encerra, é gesto inesgotável: quando a palavra encontra um tom, ela já falha com o outro que nela vibra. O mesmo ocorre com o corpo: estamos sempre abandonando nossas formas e nunca deixamos de guardá-las. O corpo e a poesia são feitos do erro, da insuficiência. Estão vivos e não se completam. Criam por guardarem a necessidade de perder para seguir. Os poemas de “Povoemas e outras nascentes” são gestos de poetizar a partir do corpo, da fonte, das experiências de antes da palavra. Por isso mesmo, são falhos, deslizam. Eles são nascentes, não se fixam e buscam, pela sua natureza, favorecer condições para ser no mundo a partir dos impulsos da vida.
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