Fernando Andrade entrevista a poeta Clara Kok

Clara Kok - Fernando Andrade entrevista  a poeta Clara Kok
 
 
 
 

Fernando Andrade –  Estando vivo, o poeta não vê órgãos, pode ver lágrimas, furtivos sorrisos, peidos com odores,  possível poetizar o dentro. Você escreve assim para mim. Fale disso no seu livro.

Clara Kok – A curiosidade pelo corpo dos animais não-humanos e pela sua comparação e relação com os corpos humanos vem desde criança. Ao longo dos anos, eu fui convencendo meus pais a terem todos os bichos que coubessem numa casa com quintal pequeno: várias espécies de passarinho, porquinho da índia, chinchila, peixes, cachorros e gatos. Na escola sempre gostei muito de biologia e durante uma época do colegial pensei em fazer medicina. Uma vez participei de uma visita guiada à FMUSP (Faculdade de Medicina da USP) aos interessados em ingressar no curso e fiquei muito impressionada ao ver um cérebro humano. Logo entendi que queria lidar com as pessoas em estado saudável e não doente e fui pra FFLCH (Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP) fazer graduação em ciências sociais, e, dois anos depois, larguei pra fazer música popular na Unicamp, mas talvez as imagens de vísceras presentes no livro, como “com a bochecha esquerda/ apoiada nos quatro quilos e meio do coração escarlate/ identifico o momento exato em que/ o fígado pulsante entre as minhas pernas/ entrega os pontos” do poema “nada de novo”, sejam um resquício desse desejo por “saber o que tem dentro”, como aparece numa das estrofes do último poema do livro: “sempre gostei de desfiar a pele das uvas/ e observar as ranhuras do seu miolo suculento/ contra a luz”.

Fernando Andrade – Eu chamaria no seu livro: Um humor anárquico. Subversivo. Suas imagens parecem um levante. Como constrói suas imagens, com este humor.

Clara Kok – Gostei bastante da imagem do “humor anárquico” e do “levante”. Acho que o poema, por si só, é mais importante do que qualquer coisa que a gente possa falar ou escrever a seu respeito, mas me interessa que a gente possa especular sobre ele e sobre o processo criativo que deu origem ao texto.
Francamente, eu não sei muito bem como se formam as imagens num poema, mas, pensando na sua pergunta, acho que vários dos poemas do livro partem de algum elemento real, um objeto ou um acontecimento que presenciei, e, num piscar de olhos, extrapolam para um lugar fantástico. Não sei se isso é de certa forma alimentado pelo fato de eu também trabalhar com teatro (estou especulando), mas me parece que a fronteira entre realidade e fantasia é uma película porosa, finíssima e elástica, como a pele de uma rã, e é muito prazeroso dissolver essa fronteira.
Quando escrevo um poema nunca tenho a menor ideia de pra onde ele vai e acho que criar esse tipo de humor é, antes de tudo, um jogo comigo mesma, um jeito de eu me divertir. O poema “nada é ficção”, por exemplo, nasceu numa segunda-feira em que eu estava espremida no ônibus lotado na avenida Faria Lima em obras, num trânsito terrível, e, quando estávamos na altura do Clube Pinheiros (um dos clubes mais chiques de São Paulo), percebi um pedestre que andava com uma sacola de supermercado e tinha uma verdura quase caindo pra fora da sacola. Supus ser um maço de agrião. O meu passatempo no resto trajeto foi inventar uma história praquele agrião e me colocar no lugar dele, afinal eu estava tão (ou até mais) amarrotada do que ele: “não me sinto em nada diferente/ suada murcha o cabelo amarfanhado/ sujo de brita e saibro/ quem foi o tenista que me jogou aqui/ justo hoje que é domingo e acabou o shampoo”.

Fernando Andrade – Que tipo de trilha entre o verso, a faixa, o vinil, a semântica, e o signo  você aprumou algum tipo de álbum.   Comente.

Clara Kok – Eu sou, antes de tudo, musicista, e, em razão disso, acho que boa parte da minha percepção do mundo vem pela audição e isso acaba se refletido no livro, como acontece, por exemplo, no poema “viagem”: “num áudio de seis minutos/ você contou que ao meio-dia/ o anfiteatro é alaranjado como o seu bote/ que adora o som das botas no pedrisco/ que o mundo é mais vazio às terças-feiras/ por isso fez a visita sozinho”. Além disso, acontece várias vezes de palavras pedirem pra entrar no poema pela sua sonoridade. Foi o que aconteceu com as “long necks” do poema “panamericana” (“15:33/ volto do mercado/ trazendo menos legumes/ do que long necks) e com o “atazaná-la” no poema “paquetá, 5:47”, que anteriormente era “acompanhá-la”, mas na última revisão do livro pulou na minha cabeça como um verbo sonoramente mais espinhento e incômodo: “desde 1853/ há sempre alguém para atazaná-la/ com seu uniforme da prefeitura/ respingado de cólera e gripe espanhola”. A escolha pela “escuta” no título do livro é, pra mim, uma pista de uma chave de leitura possível para o leitor e, ao mesmo tempo, uma espécie de homenagem a esse lugar de onde eu venho.
Alguns poemas do livro, como o “miopia”, nasceram como poemas e depois viraram canções (que ainda não lancei, mas é o próximo projeto depois do lançamento do “Escuta clandestina”); algumas letras trazem uma melodia embutida e já nascem como canções; o que ainda não aconteceu comigo foi uma canção se desprender das “amarras” musicais e se lançar numa folha de papel como um poema. Vivo pensando nessa relação (nada estática) entre o que é compor “canção” e o que é compor o “poema” e eu inventei uma metáfora que por hora tem me servido: o meu ver as duas experiências são como viagens de asa delta que começam no escuro completo, no poema você tem uma lanterninha, com a qual coloca o foco ora num lugar, ora no outro; já na música é como se o dia aos poucos fosse amanhecendo – à medida que a composição avança, a estrutura musical vai te propondo contornos melódicos, harmônicos e rítmicos que vão, de alguma forma, balizando o seu caminho, como se fossem cadeias de montanhas.

Fernando Andrade –  Deslocar – mudança de rumo, de prumo. Ir à China pela rodovia mais próxima. Distâncias são em kilometros, mas  podem ser surreais. Fale disso.

Clara Kok – Pensando sobre a sua questão, percebi que nos poemas há muitas marcações relativas ao tempo e espaço, pelo visto eu tenho uma necessidade de situar a mim e ao leitor, talvez seja um resquício das inúmeras redações dos tempos de escola em que tínhamos que responder às questões QQQOCPQ (Quem? (O) Quê? Quando? Onde? Como? Por quê?). Há realmente muitas distâncias no livro, algumas bem concretas, outras puramente imaginárias. A gente anda entre elas o tempo todo, e eis aqui outra vez o jogo de transitar com muita liberdade entre o real e a fantasia. Os versos de abertura do livro “pré-história” (“o hospital onde nasci/ é o lugar mais distante em que já estive/ no oco de uma incubadora”) são um bom exemplo desse abismo entre a distância real e a distância sensível.
O poema “baliza”, cujo início é “sonhei que a gente ia de carro/ pra China/ levamos os passaportes/ pouca bagagem/ nenhuma palavra em mandarim” foi um dos primeiros a ser escrito. Num dos longos trajetos de ônibus em São Paulo, no início de 2020, eu li uma matéria da Piauí escrita por um professor brasileiro que lecionava em Wuhan, província chinesa onde foram registrados os primeiros casos de Covid, e me soou tão surreal e chocante a descrição do isolamento social, do uso de máscaras, da impossibilidade de sair de casa e da cidade às moscas, que fui incapaz de imaginar que, pouquíssimo tempo depois, passaríamos pela mesma situação no Brasil. Eis que algumas semanas depois estávamos nós, brasileiros, mascarados, trancados em casa e apavorados. Esse paralelo entre São Paulo e Wuhan foi um encurtador de distâncias pra mim. Confesso que já não me lembro se um dos meus sonhos pandêmicos foi ir de carro pra China ou não.

Please follow and like us:
Be the first to comment

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

Social media & sharing icons powered by UltimatelySocial