Texto Glossário de Fabiano da Matta sobre o livro ‘Cânticos para enlouquecer Cristo’, editora Litteralux 2024

Fernando Sousa Andrade JPG scaled - Texto Glossário de Fabiano da Matta sobre o livro 'Cânticos para enlouquecer Cristo', editora Litteralux 2024
 
 
 
 

Fabiano da Mata é escritor, pedagogo e músico. Publicou os romances No quarto do peixe (2022) e Leões na fechadura (2023) pela editora Penalux (atualmente, Litteralux). E de forma independente, os livros Amor sem parcimônia (2016) e Levando a estrela (2018).

 
 

Cânticos para enlouquecer Cristo” é um excelente livro. Os poemas e contos conversam com a tradição literária de uma forma contemporânea (metalinguística e intertextual), e, ao mesmo tempo, o faz com ares de “descomprometimento”, o que produz um efeito peculiar. Os poemas se vestem de textos da oralidade, anunciam, contam causos, anedotas, fazem jogo de adivinhas, entram em diálogos etc., e são de uma intertextualidade aberta, conversam com escritores da literatura e das literaturas das outras áreas do saber.

Segue alguns pensamentos que tive durante a minha primeira leitura.

“poema Deleuze”. Este primeiro poema é o início de corpos que surgirão com a leitura. Um poema que trabalha a partir de conceitos deleuzeanos, vestindo-os num corpo poético (corpo sem órgãos?) dotado de palavras abertas e presas a corpos.

“Sibilina bailarina Lacan”. Digo que é a invocação do ser dançante ao ritmo iluminado por lamparinas consoantes. Poema em que se mostra a gramática do inconsciente, manifestada em travessões/barricadas. É o herói a romper com fraseologias ou afirmá-las no seu sacrifício? Um herói salvo por suas neuroses… “coletivas”?

“Casa Vazia”. Aqui o poema se aproxima da prosa anedótica. Faz-nos pensar na ideia de casa e vazio. O monge nervoso ordena (ou empilha) as palavras (sentido de construção), mas, depois de tudo isso desconstruído (após ação refletida), só lhe cabe ver o vazio.

“Torção dos sentidos”. A poesia fala de si mesma, deixando a proeminência do sentido sobre as coisas.

“Um blues demoníaco”. Tom Waits, antes Nick Drake (livro anterior), sempre bons músicos. O leitor agradece pelo blues demoníaco, pelo bom cinema (sobretudo, à dois), ainda mais em tempos difíceis de muita maquinaria. Este é um poema de respiro.

“Jonas que foi engolido”. Para os da Antiguidade, como o profeta Jonas, uma baleia era um peixe, algo contestado pelo cientista Linnaeus em 1735. Então por muitos anos se perguntaram e ainda se perguntam, sobretudo, literariamente e pela exegese bíblica: “que peixe grande era aquele que engoliu Jonas?”. Mas este é um poema maiêutico, da baleia “mais mamífera que eu e você”, baleia parturiente, o que quer dizer que temos que passar pelo seu ventre infernal, realizar nossos partos/versos depois da passagem por “palavras exteriorizadas”, “comboios”, “(em)boleias”, “viaduto”, “esparrela de uma história”…

“Um autor”. Remete à obra “Seis passeios pelos bosques da ficção”, de Umberto Eco. Num texto ficcional cabe indelicadas nudezas, pois presume pacto ficcional (“veraneio”).

“Asas ou fissuras?”. Diante do desejo, o ideal do outro nos coloca asas ou fissuras? Dialoga com Lacan.

“Poema Metafísico”. Vejo a complementaridade entre “levante” e “levite”, que se tornam palavras “irmãs”, como se achassem o lugar comum.

“Dicionário poético”. Remete aos inutilitários de Manoel de Barros. Inutilitários difíceis de se tornarem úteis (“pois é de investigações”), inclusive enquanto nomes antes de coisas.

“São textos”. Destaque para “O que velas ou que escreves: serão ficções-textos.” Penso: lapsos e nuvens nos põe a velar sempre.

“Vire à esquerda” É hora de atender a linguagem, vê-la falar à esquerda, pois está com a doença da “voz conformada”.

“Cântico para enlouquecer Cristo”. Melhor os sufixos do que os crucifixos, até porque os loucos precisam sê-los, até mesmo Cristo.

“Samba embirrado”. “Lápis”, “lápide” e “Lapa” formam pares com “colorir”, “não morrer” e “ir” no atravessar de uma sexta-feira santa. Mas essa birra/barra é saia, é passageira.

“Do nada ao tema”. A palavra “tema” me remete a “teimar”, “temer”, “tematizar” (movimentos do vivo). E “o nada” à “desafode”: se mostra como “o” substantivo do texto, longe de ser estrada.

“Lareira”. “Traga a lamparina” me lembra das “lamparinas consoantes”, ainda mais quando se diz “neste breu é difícil achar a silhueta”. “7 dias” me remete ao “sétimo dia”: momento de iluminar a obra (sentido de se confortar/conformar)?

“Pã cria”. Pã entrou na conversa para “pã criarmos”, “pã crermos”, com muito pâncreas. Vejo aí as bacantes.

“Solta o verbo” Um jogo de adivinhas. Empreiteira (ser) e empreitada (estar) num encontro irruptivo?

“conto do gato e rato depois do poema”. O ato ficcional, o teatro, e o meio do caminho era pedra, queijo, era gato surpreendendo rato – o necessário olhar para trás (frente?). E não há teólogo que resolva.

“Obra ou axioma”. Como disse Caio Fernando Abreu sobre o ato de escrever ao seu amigo José Márcio Penido: “Tira sangue com as unhas. E não importa a forma, não importa a ‘função social’, nem nada, não importa que, a princípio, seja apenas uma espécie de auto exorcismo”.

“O processo de K”. O “X”, o “Y”, o “Z” (livro anterior), agora o K de “O Processo” (Kafka)…

“Formigas sociais”. De volta o “corpo” do “poema Deleuze”, agora desossado por linguagem: navalha/espingarda, ossos/novos.

“Ócio criativo a preço módico”. Todos os dias lemos “periódios”, e nem sempre “o calmo” é quem diz.

“Senhoras e senhores ouvintes”. Segundo “poema respiro”, apesar dos alertas de uma trip pasteurizada. Há momentos em que não queremos nem cães nem gatos, muitos menos os VIPS.

“O grito”. O rito faz do grito um silêncio?

“Coautoria”. Um poema no plural, ilustrativo dessa “Coautoria”. Sim, somos “interregno entre signos”, somos “a prova e o original”.

“Estado de Arizona”. O sentido/sentir da labuta já começa com a etimologia do nome Arizona, terra árida; depois vai para o “apanhou nos campos de centeio” (J. D. Salinger), com um “apanhar” polissêmico: “uma longa faca entrava”, mesmo assim, “trabalhava” e ia “colhendo fé e algumas notas de dinheiro”. Ou seja, o capitalismo de sempre, amenizado com algumas notas poéticas: “contos para ver o verso”.

“Olhe o trem”. São os tempos e espaços do verso e da prosa. Quando não nos é possível ler com atenção o “pare, olhe e escute”, há uma convocatória do verso, o que pressupõe mais atropelamentos do que atravessamentos.

“Acha, lenha, poética, para queimar”. Depois de atravessar a linha de “Olhe o trem”, aqui se inicia a série de três excelentes contos. “Acha, lenha, poética, para queimar” é a política sexual por trás das palavras. O “achar” (masculino) não conversa com “acha”, mas se faz eufemismo para invasão (sintoma das tensões?). “Acho”, “macho”, “machocar”… e vão seguindo como que apontando para alguém (desígnios?). “Enquanto aqui” mulheres “fagulham palavras” por meio de uma alquimia desconhecida pelos homens (isto é muito bruxuleante), e desmaiam certezas.

“A livraria”. Somos livros (onde ouvi isso mesmo?). Então é uma pena que sejamos comercializados (que o diga Antônio Candido). Esse conto nos faz pensar em como nos inter-relacionamos com os livros, traz a saudade de um ritual que se perdeu, o enamoramento, o sentar junto da garota do sorriso Etrusco.

“Impasse de dias marcados”. Temos aqui novamente as bacantes e os bacamartes, expressados agora por personagens que lembram Horácio Oliveira e Maga de “O Jogo da Amarelinha”, de Cortázar, ou entre este e Edith Aron. Ana faz com que Léo entre no “jogo/romance aberto” (incompreendido pelos que contam “tiros ao pé da letra?”). Mas antes disso, há a “ortodoxia entre a carne e o pão e o desjejum da manhã” (o carnaval diário), algo que linca com “alimento”, “corpo de Cristo”, com uma antropofagia metafísica derrubada pelo rito da carne dessacralizada instituído por Ana e Léo.

Texto Glossário de Fabiano da Matta sobre o livro Cânticos para enlouquecer Cristo, editora Litteralux 2024.

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This Article Has 1 Comment
  1. Roberto Monteiro Reply

    Gostei da capa… adoro essas provocações… quem não tem argumento, vai destilar ódio… que eles se afoguem na própria baba odienta…

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