Fernando Andrade entrevista a escritora e cineasta Julia T. S. Martins

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Fernando Andrade.  O que seria a repetição aplicada à conceitos psicanalíticos, na escrita alinhada ao gênero estranho\fantástico. Comente.

Julia T. S. Martins. O gênero estranho é considerado um parente do gênero fantástico, mas com diferenças importantes, e é justamente isso que eu abordo no livro, ao buscar fazer uma caracterização mais precisa e, ao mesmo tempo, abrangente desse gênero.
A repetição é um conceito central em psicanálise e seu caráter inconsciente e compulsivo tem relação com a pulsão de morte. Mas a repetição não deve ser entendida como reprodução do mesmo, e sim como o retorno do diferente. Ou seja, o que foi reprimido retorna sob uma nova forma, outra roupagem, encontra encenação em um novo contexto. É quando nos damos conta de algo operando nos bastidores, algo que foge ao nosso domínio, mas que comanda nossa ação. Estamos repetindo padrões de comportamento e vivendo novamente as mesmas situações, a partir de um novo arranjo de elementos.
Já o Estranho na psicanálise pode ser entendido como o “retorno do reprimido” por uma via estética, manifestando-se nele o caráter pulsional da repetição. O estranho é algo que se repete, mas que ao mesmo tempo se apresenta como diferente. Portanto, no gênero estranho, a repetição seria aplicada enquanto um procedimento estético, o que permite diversas abordagens, que vão desde Franz Kafka até David Lynch.

Fernando Andrade.  Quais linhas da temática do escritor Kafka mais se condensam ao universo do estranho, diga quais pontos a escrita dele foca o estranho?

Julia T. S. Martins. Kafka parece ser regido pela repetição, é como se ele se propusesse a escrever o teatro do inconsciente – uma narrativa que Maurice Blanchot qualificou como impessoal e mítica, fiel à essência da linguagem. É o que considero seu traço distintivo. A literatura de Kafka segue esse movimento dominado pelo retorno do diferente, em que as situações vão escalonando em um curso espiralado, levando inevitavelmente ao mesmo impasse, a libertação nunca alcançada – aquilo que Blanchot enxerga como uma transcendência negativa.

Fernando Andrade.  O cinema parece um universo, pela causa imagética de condensar elementos semióticos do fantástico e estranho, e dentro dele por que David Lynch assume importância. Comente.

Julia Martins. Há duas marcas importantes que caracterizam o estranho: a repetição e a duplicação, conceitos que se coadunam e complementam. David Lynch vem trabalhar a questão do duplo narrativamente, em cinematografia. As narrativas de Lynch sofrem muitas vezes uma duplicação, em que as identidades dos personagens são subvertidas a meio termo, causando estranhamento ao espectador. É claro que este não é o único recurso que ele utiliza, mas é central na construção de suas estruturas narrativas.

Fernando Andrade. A literatura latino americana dentro de um certo academicismo ficou conhecida pelo realismo fantástico. Mas quase não se fala do estranho no continente. Por quê?

Julia T. S. Martins. O gênero estranho ficou muito associado a narrativas psicológicas, por isso acho que se fala pouco nele, porque seu escopo ficou muito reduzido. Mas quando se pensa em termos de poética narrativa, nos procedimentos estéticos que causam estranhamento, ele pode ser considerado um gênero muito mais amplo. No meu livro, busco defender a ampliação deste gênero enquanto uma forma de compreensão de certas estruturas narrativas. O gênero estranho passaria a abarcar muitas obras e autores que não encontram gênero e poderiam ser acolhidos pelo Estranho.

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