Fernando Andrade entrevista o escritor Fiori Ferrari sobre o livro ‘O coração do deserto é azul’

Fiori Fiorelli2 - Fernando Andrade entrevista o escritor Fiori Ferrari sobre o livro 'O coração do deserto é azul'
 
 
 

FA) Na sua lírica há sempre algum tipo de diálogo que não atravessa a narração ou o teatro, algo mais de um processo analítico. É como se houvesse alguém à escuta.  Fale sobre isso.

FF) Sua pergunta identifica um fato muito caro para mim. Eu escrevo como se contasse a alguém. Talvez isso ocorra porque ouvir histórias, desde a infância mais profunda, sempre foi a descoberta de um mundo onde eu pudesse me encontrar. De certa maneira, por caminhos que não distingo, eu construía um outro mundo quando as pessoas, meu pai, minha mãe, minhas avós se punham a contar histórias, normalmente da sua vida, da partida dos lugares onde viveram, do sítio para a cidade ou da chegada ao Brasil. Líbano, Itália eram espaços que para mim só existiam quando se contava uma história. Mas há também esse lado psicanalítico. Sou devedor de obras que me marcaram definitivamente e que são clássicos na literatura brasileira. Dom Casmurro, do Machado de Assis e Grande Sertão: Veredas, do Guimarães Rosa. É claro que o contar está mesclado com o processo de cura. Ou, ao menos, dizer significa costurar novamente esse tecido esgarçado da vida, dizer é reunir pontos que sozinhos se situam no pano e precisam da trama, e digo dizer para o outro. Organizar a linguagem para mulheres, homens, crianças, é um ato de amor e de dor. É uma espécie de potência porque quando falamos mostramos nossas fragilidades sem medo, ainda que dizer seja esconder. É uma impotência porque o que dizemos não é a certeza da adesão do discurso no outro, ainda que dizer seja esperança de ser compreendido. No entanto, dizer, para mim, é cura da melancolia e é sua melhor expressão.

FA) Não digo esperança, mas sim, um otimismo poético em seu discurso lírico,  onde o trágico, o épico, certa dramaturgia desemboca em imagens bonitas. Como é seu processo de criação?

FF) Não tenho um ritual para escrever. A falta de tempo, dou aulas em duas escolas de Ensino Fundamental, o cansaço são dois fatores que não permitem que eu desenvolva modos de um tempo próprio para a escrita.
O que tenho são gatilhos para escrever. Aquelas coisas que de repente disparam e ameaçam um verso, ou reivindicam um espaço rítmico como se a musicalidade viesse de uma cena que vi ou vivi e tivesse de ser grafada ou pronunciada. Aliás, a música é, no meu caso, a organizadora desse lugar interno que me provoca para a escrita. Eu só posso escrever de um lugar. Sou uma voz que reproduz, mimetiza, emula outras vozes, no sentido de Bakhtin, somos, quando escrevemos, polifônicos, mas a poesia tem a natureza tão marcante da subjetivação que ao dizer me parece que construímos nossa identidade, nas escolhas de enunciação que fazemos. Em outras palavras, só somos poetas porque escolhemos o que dizer numa sequência muito pessoal que só a identidade lírica pode oferecer com tal potência.

FA) Seu trabalho está sempre em algum lugar pairando sobre origens, pertencimentos. Se (não) há deslocamentos, há sempre a procura de uma certa residência, poética. Comente.

FF)Sim. Numa instância última, meus poemas são sempre a busca de uma morada. Ou a construção dela. Meus modos de dizer e de olhar/selecionar são modos de uma casa que muito refaço e desfaço, que muito determina abrigo, desejo, esperança, mas que sei irrecuperável. O que tenho na poesia é uma casa que se perdeu. Então a poesia é a tentativa de redefinição de um território, é a territorialidade como lugar de procura. Sim, isso tem muito de ver com o lugar na infância, mas não creio que meus poemas sejam isso ou tão somente sobre isso. A construção da minha casa só é possível quando incorporar novas identidades, só é possível quando trouxer consigo novas diferenças. Portanto não falo do resgate do espaço da infância e, ainda que saiba dessa procura, ela vem junto a uma nova morada. Um novo mundo. A poesia só faz sentido para mim se apontar para um outro lugar (e falar deste que agora me situo é também falar de outro lugar porque escrever é desvendar). O lugar da vida que só pode ser vida porque se renova.

FA) Como usa a leitura para trabalhar referências literárias, para criação poética. Comente.

FF) A leitura não produz necessariamente um escritor, uma escritora, no sentido estético. Mas é claro que quando se escreve é da leitura que retiramos consciente ou inconscientemente referências, posicionamentos, gostos de arte, modelos para aderir ou não. Acho fundamental estudar movimentos literários, acho fundamental ler a crítica literária. Hoje, já com certa experiência, entendo as influências de base da minha escrita. Sei também que o ato de ler é sempre um ato que revela o que nos escondia, e ler a palavra e ler o contexto e ler o mundo na alegria intelectual de um Paulo Freire. Contudo não me considero um intelectual. Tenho pouco conhecimento em teoria, leio, mas não tenho a exigência acadêmica, não tenho o método, ainda que o tenha por pura necessidade íntima, pura subjetividade (ao longo dos anos um método para a produção dos poemas é o que nos confirma a voz estética). Ainda assim sinto a impressão de que não seria escritor se não tivesse lido o que li. Diretamente não saberia explicar como as leituras que faço influenciam minha escrita. Me causam deleite, estranhamento, revolta, incômodo, alegria, tristeza, enfim, me situam na vida e nos versos que escrevo.

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