FA – Seu romance não julga sua personagem pelas suas escolhas perante uma rotina na escola perturbadora. Mas ela somatiza suas ações à nível psicológico. Fale um pouco desta sua personagem.
AV – A personagem tem seu interior exposto, por ser a melhor forma de contar o que se passa de fato com professoras sobrecarregadas. Seus pensamentos, angústias, medos, desafios e limitações não são imaginados por quem não conhece a profissão, e minha vontade era expor esse universo. Se a professora fosse julgada pela narradora, soaria como censura, e isso ela mesma já fazia consigo, tentando não ser violenta com os alunos. No decorrer da história a protagonista demonstra seu desprezo por colegas, homens e autoridades, preservando, com exceções pontuais, os estudantes.
Na realidade escolar, os professores somatizam em grande escala. Não tem tempo nem dinheiro para uma vida com lazer e descanso, terapia ou saída melhor: a opção quase “maternal” de aguentar, apesar das greves frequentes, os mantém, na prática, silenciados. E quem cala a opressão que sofre, adoece. Inúmeras vezes presenciei colegas engolindo tarjas pretas entre um turno e outro de trabalho, ou até no intervalo, para conseguir suportar o dia todo em aulas. Eu mesma já lecionei com ansiolítico sublingual no bolso. A situação é dramática, e se baseia na minha experiencia real; também somatizei, e a escrita “me salvou”, de certo modo, porque expressei tamanha frustração. Aqui no Rio Grande do Sul professores da rede pública são motivo de piada, porque associadas à pobreza e humilhação, faz décadas.
Dentro desse contexto, a personagem percebe aos poucos que não há nada que possa fazer, além de “tentar não enlouquecer como todos ali”, que sequer dão-se conta da rotina trágica.
Assim, aceita, aos poucos, a violência como forma de se relacionar com o mundo, e sente-se “menos pior”, pois isso lhe dá poder. Então rende-se, e inclina-se a lucrar materialmente com essa nova postura.
A intenção foi irônica ao final, mas sinaliza claramente o que professores alertam há décadas: sem boa educação não há saída possível, será a barbárie. A escolha por colocar a violência na personagem que deveria “zelar” pela boa formação dos alunos mostra que a violência sai de controle facilmente.
FA – Você adotou uma linguagem sem poética, sóbria, com algum traço de humor até bastante sutil. Porque escolheu este traço de escrita para seu romance.
AV – A história é dura, triste, difícil, considerei que a linguagem deveria ter essas características também, sem floreios e estímulo às imagens poéticas. Ao contrário, desejei descrever a dor que a personagem carregava, e não sabia como resolver, narrando situações que levassem o leitor para dentro da sua rotina, sem dó nem piedade! Queria compartilhar as sensações que nós, professoras sobrecarregadas, vivenciamos.
FA – É interessante notar que sua narradora tem certos princípios éticos na convivência humana. O nível de intolerância com desvios dos outros é alto. Comente.
AV – A personagem tem princípios éticos porque são justamente eles que a fazem adoecer profundamente. Professores que jogam para cima dos alunos suas frustrações são conhecidos, todos tivemos um desses durante a vida escolar, e eles dão risada quando um aluno sofrido repete o ano —decidem afastar-se emocionalmente para se proteger. Se a personagem não soubesse definir o certo e o errado, seria matadora desde sempre, não uma professora de arte, mas ocorre que vai sendo corroída pela brutalidade da sua condição, e perde-se dos seus princípios, (exatamente como acontece com seus alunos). Adoecida, isolada, passa odiar o ambiente e a julgar colegas, colocando “nos outros” a responsabilidade por sua dor. É uma personagem estraçalhada emocionalmente.
FA – Você de forma alusiva fala como nossa sociedade se exprime de forma coletiva. A forma com exemplos são ministrados na convivência entres cidadãos, Coisa que funciona na educação da infância, parece não funcionar mais na fase adulta. Seu romance é quase uma metáfora disso. Comente.
AV – Se bem entendi, argumentas que a professora, que deveria ser “adulta e responsável com os alunos”, apresenta também um comportamento que é resultado do meio em que está inserida. Se sim, a intenção foi exatamente essa, demonstrar que o meio em que temos vivido (não só professores) é mais que adoeceDOR, enlouqueceDOR. Particularmente vivi na prática um estresse pós traumático diretamente ligado ao trabalho na escola, e asseguro que a falta de controle flerta com a pessoa emocionalmente adoecida que permanece trabalhando.
Creio que o romance é um holograma do que temos vivido no capitalismo tardio, com o desfazimento do estado e suas funções, e a consequente sobrecarga insuportável nos dias dos humanos comuns.
*Eu queria comunicar a dor que tem os educadores, o estado real da educação pública brasileira e o perigo que isso representa para toda a sociedade; pelos teus questionamentos, parece que consegui, e fico realmente feliz com isso.
Obrigada!
Be the first to comment