F.A.) Teu livro de contos para mim foge um pouco da classificação de narrativas curtas, (contos), pois sua escrita tem uma propensão ao ensaio, junto com parte figurativa das fotos artísticas. A narrativa conta – fábula, já o ensaio – reflete, pensa. Fale um pouco disso.
L.C. – Para mim, o conto, como qualquer outro gênero narrativo, pode ter o elemento da reflexão e do provocar, seja através do mote que sustenta a trama, seja pelo personagem, escolha de palavras, subtextos. Escolhi contar histórias que gerem incômodo e mesmo que através do absurdo, haja o reconhecimento, infelizmente rotineiro, da sociedade em que vivemos: patriarcal, violenta e cruel. Então, sim, são contos que refletem e pensam o real enquanto “fabulam” usando ligeiramente o insólito e os elementos ficcionais. As fotos artísticas são um apoio visual que completa a experiência. São uma âncora, uma sinalização que guia o leitor e o ajuda e estimula a adentrar a atmosfera da história. Sou das muitas artes, então, ter a junção de literatura e fotografia em uma só obra me deixou muito satisfeita.
FA) O Veneno talvez seja prática mais antiga de assassinato, a mais literária talvez. Você o usa não só como uso mas artífice para falar de violência de gênero contra as mulheres. Como usou ele para falar de toda contaminação, aqui uso uma metáfora da doença como pensamento masculino contra tudo que não é masculino. Comente.
L.C. – O veneno realmente assumiu vários papéis nesse projeto. Um método de vingança, uma analogia com as diversas formas de “ser envenenada” em vida, através da barbárie as quais as mulheres são submetidas e, porque não, chegam a fazer parte, nesse caso em atos injustificáveis, mas carregados de significado, são as últimas consequências para alguns dos personagens; um descarrilamento, a perda de qualquer limite moral. Assim, o veneno se tornou o fio condutor junto à afirmação: “São muitas as maneiras de tirar a nossa vida, sem de fato nos assassinar”.
F.A.) Antes da violência física acho que seu livro fala um pouco sobre o pensamento hegemônico, sobre força, domínio, prevalência, palavras que reforçam o caráter do homem. Talvez uma desconstrução do pensamento deste molde possa mudar a maneira da coisa. Comente.
L.C. – O machismo estrutural é parte importante dessa mistura mortal que envenena mulheres dia a dia, seja dentro das casas, nos ambientes de trabalho ou nas relações sociais, tornando-as não só vítimas, mas muitas vezes aliadas de um sistema que continua colocando-as como seres de segunda classe, propriedade, mas fingindo em algum grau que são importantes para uma “irmandade” que despreza o sexo feminino e não respeita as nossas existências, conquistas, competências e direitos. Por isso, insistir na realidade e na ficção em discursos que provoquem o fim dessas estruturas que nos limitam e quebram dia a dia é urgente. Por isso, a escolha das personagens e protagonismo feminino, além de também retirá-las do papel comum de vítimas, estabelecendo-as como agentes ativos nas tramas.
F.A.) Fale um pouco de como você moldou esta linguagem incisiva, pontual, para escrever seu livro.
L.C. – Também sou poeta e me atraio pelos extremos da língua. Poder escrever a crueza da realidade de uma mulher que perdeu o filho e a beleza da memória dos olhos da criança que ela nunca voltou a ver me atrai. Nesse livro, falo muito da realidade em seu estado mais sombrio e este não permite muitos floreios. Enquanto estudava prosa, me achei em uma forma de narrar que se deleita nessa dualidade, mas, ao mesmo tempo, não recorre a muitos artifícios para prolongar algo que tem urgência para ser dito. Na verdade, é preferível aos contos evitar labirintos para se revelar ao leitor e foi assim que o modo de narrar cada conto foi estabelecido. Como já diria Julio Cortázar, citando um amigo, “o romance ganha sempre por pontos, enquanto o conto ganha por nocaute”.
Espero sinceramente que este seja o efeito de “Veneno e outras formas de matar”.
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