Fernando Andrade entrevista a escritora Júlia Souza Cabo

Julia Cabo - Fernando Andrade  entrevista a escritora Júlia Souza Cabo

 
 
 
 
 

Fernando Andrade – Torquato Neto não foi um poeta sem contexto. Ele viveu sua época, sua contracultura. Fale como você o perfilou nesta grande fase brasileira e criativa da produção nacional poética. Situando a poesia marginal.

Júlia Souza Cabo – Torquato foi um artista que, em diversos momentos, parecia estar no epicentro das manifestações contraculturais que se desenvolveram no Brasil na década de 1960 e início da década de 1970. Foi essencial nas articulações do tropicalismo, e não apenas como letrista em suas colaborações com Caetano Veloso, Gilberto Gil e Jards Macalé, mas também como um dos pensadores e intelectuais que desenvolveram o projeto tropicalista. Após seu retorno da Europa no início da década de 1970, se tornou um ferrenho defensor do Cinema Marginal, justamente no momento em que este emergia no campo cultural carioca em meio a diversas polêmicas e rivalidades com o Cinema Novo. Participou como ator do filme Noferato no Brasil (1971) e chegou a filmar e dirigir um filme em Teresina, O Terror da Vermelha, que só veio a a ser finalizado após sua morte. E não podemos esquecer sua atuação como jornalista cultural. A coluna que escreveu entre 1971 e 1972 no jornal Última Hora, a Geléia Geral, era um dos poucos locais nos quais manifestações contraculturais recebiam espaço em um jornal de ampla circulação.

Agora, sua relação com aquilo que ficou conhecido como Poesia Marginal é um caso à parte. A Poesia Marginal ganhou força no campo cultural brasileiro quando Torquato já estava morto. E embora ele houvesse publicado em sua coluna um texto de Waly Salomão sobre um dos maiores nomes desta, o poeta Chacal, não dá pra dizer que tenha feito parte deste fenômeno cultural. Sua vinculação a esta aconteceu em grande parte porque Heloísa Teixeira incluiu Torquato na antologia 26 Poetas Hoje (1976), situando-o como um dos antecedentes da Poesia Marginal.

Fernando Andrade – A morte através do suicídio me parece que se torna simbólica sobre algum tipo de personagem que forma ou deforma a imagem pública de seu ator. Somos sempre criações mesmo em posição biográfica. Comente.

Júlia Souza Cabo – A morte do Torquato Neto por suicídio marcou não só a percepção que se tem do autor, mas a leitura de sua obra. Não são incomuns interpretações de seus escritos que buscam encontrar nestes presságios ou sinais de seu suicídio. Além disso, o que observei em minha pesquisa é que desde o início da década de 1980 há leituras que associam sua morte com os caminhos que a cultura brasileira tomou durante a ditadura civil-militar. Neste tipo de interpretação, a morte de Torquato teria marcado um momento em que a cultura produzida no Brasil teria entrado em decadência. São leituras com um quê de conservadorismo, mas que tem de ser situadas em um momento de expansão da indústria cultural no Brasil. Neste momento, Torquato e sua morte viraram símbolos de resistência e Torquato passou a ser uma espécie de poeta marginal ideal.

O problema com estes tipos de leitura é que acabam por ignorar a complexidade desta obra, apagando ou deixando de fora tudo aquilo que não cabe na figura do suicida ou do marginal resistente.

Fernando Andrade – Por que suas publicações sempre se situam na sua posteridade após morte. Isto de certa forma, cria-se uma lenda, um mito. Comente.

Júlia Souza Cabo – Até o momento de sua morte Torquato nunca havia publicado nem organizado nenhum livro para publicação. Logo, todos os livros através dos quais o leitor pode ter contato com a obra literária de Torquato Neto foram fruto do trabalho de terceiros. O poeta Waly Salomão, que organizou junto com a viúva de Torquato, Ana Duarte, as duas primeiras edições de sua obra em 1973 e 1982 fez diversos relatos sobre isto. Sobre a dificuldade de organizar uma obra que foi salva do fogo e da impossibilidade de decidir qual seria a melhor versão de um poema a ser publicada.

Não sei se isto contribuiu necessariamente para a criação desta mitologia em torno da figura de Torquato Neto, mas, em meu livro, analiso como o fato de se tratar de uma obra composta por materiais tão diversos como letras de música, colunas de jornal, cartas e rascunhos em cadernos contribuiu para esta ser apropriada e relida de acordo com interesses diversos em momentos diferentes da história do país.

Fernando Andrade – Me fale de Torquato, compositor, letrista, tendo parceiros como Jards Macalé, Caetano Veloso. Este lado parece-me mais frutificante. Comente.

Júlia Souza Cabo – Até sua morte em 1972 este era o lado mais conhecido de Torquato. Há, inclusive, uma reportagem no jornal Pasquim do ano seguinte a sua morte que o chama de o poeta dos baianos. Este seu envolvimento com os Gilberto Gil, Caetano e outros músicos do tropicalismo foi um processo interessante, pois inicialmente Torquato era veemente contra a “contaminação” da música popular brasileira pelos ritmos do pop e rock americano e inglês. Achava a Jovem Guarda, por exemplo, uma enorme bobagem. Isto está na coluna Música Popular, que ele publicou no jornal Correio da Manhã em 1967 e a leitura desta revela muito sobre como se deu a articulação do tropicalismo musical. A mudança de opinião de Torquato acompanha uma mudança profunda na música brasileira que definiu, de certa forma, nosso entendimento desta até hoje.

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