Fernando Andrade – Não é a rotina que desembaraça e desloca seus personagens, são afetos verticais como certas pulsões onde a normalidade se rui por dentro. Como pensou estas extremidades onde a emoção é tão à flor da pele?
Alexandre Arbex – Acho que os desenlaces trágicos que decorrem de uma ruptura brusca, de um corte na ordem da normalidade, são geralmente mais traumáticos do que aqueles que decorrem de um paulatino agravamento das tensões, de uma gradual acumulação de pequenos conflitos que, em algum momento, acabam por transbordar. Mas esses dramas que vão se construindo de modo mais lento, crescendo na sombra, só se tornam perceptíveis depois que os acontecimentos ultrapassam o ponto de não retorno. Essa progressão mais cadenciada quase sempre dá às pessoas (às personagens) a impressão de que o desastre poderia ter sido abortado em algum momento antes de se tornar inevitável. Esse sentimento amargo e confuso de que nos tornamos de alguma forma presos dentro das próprias escolhas é algo que atrai minha atenção e que tento elaborar na escrita.
Fernando Andrade – A heteronormatividade é implodida por você em muitos contos. Lados de masculino e feminino se tocam e se trocam com frequência. Comente.
Alexandre Arbex – Todos os contos do livro são narrados em primeira pessoa por personagens femininas, mas acho que elas não têm outro compromisso senão com suas próprias histórias, com o encadeamento concreto e sensível dos fatos que afetam a vida delas. Em algum momento, nutri a expectativa de apagar a autoria masculina por trás das vozes e das histórias das mulheres, mas, relendo o livro, vejo que a sombra do masculino ainda pesa em quase todos os contos. Era um fracasso previsível, não sei se inevitável. Talvez esse intercâmbio entre os lados masculino e feminino expresse uma certa hesitação da perspectiva, uma dificuldade minha de permanecer por muito tempo na posição da narradora sem denunciar o disfarce.
Fernando Andrade – Nunca vi um autor explorar tanto o gênero conto quanto você – dentro de um espaço da contenção você dilapida toda a ambivalência e ambiguidade humana. Como é seu processo criativo?
Alexandre Arbex – Tento escrever todos os dias e descarto, desisto de muita, muita coisa. De modo geral, quando começo a escrever, tenho apenas um argumento preliminar, com um começo e um fim, este quase sempre provisório. Eu descreveria o processo de escrita como um truque de desaparecimento do autor: à medida que o fio da história vai se definindo e as personagens vão ganhando corpo, elas se despojam do que não pertence a elas e vão ditando o ritmo dos acontecimentos. Depois de alguma busca, de algum acúmulo, certas direções vão emergindo do conto e ele estabelece sua própria lei. O conto, claro, não deixa muito espaço para desenvolver personagens mais complexos ou ambíguos como você diz, então é preciso empregar alguns artifícios, fabricar uma ilusão de profundidade, mais ou menos como um pintor consegue, com poucos traços, produzir a impressão de que uma coisa está a quilômetros de distância dentro de uma tela 14x21cm.
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