Fernando Andrade entrevista o poeta Marcio Cappelli

Marcio Cappelli - Fernando Andrade entrevista o poeta Marcio Cappelli
 

  Escrever o poema
   é ler a mensagem 
   do papel esfacelado
    no bolso da calça
    depois da lavagem

 
Marcio Cappelli poesia 7letras 200x300 - Fernando Andrade entrevista o poeta Marcio Cappelli
 
 

Fernando Andrade – O vazio pode ter sua função de criação, assim como tela branca é prenhe de certas lacunas a serem pintadas. Preencher com palavras – nada, assim como a oração religa nada-vazio à Deus. Na sua poética há esta conexão entre estes elementos citados por mim?

Marcio Cappelli – Gosto de pensar na poesia como um exercício de acercamento do vazio. Há, aqui, uma relação com o que podemos chamar de filosofia apofática ou de teologia negativa. O poema é, por um lado, a tentativa de sedimentação, na linguagem, de algo que cintilou no campo da experiência. Por outro, é o testemunho do fracasso dessa tentativa de dizer esse não-sei-quê experimentado. Ele quer dizer o que diz e o que não diz. A concepção de Octavio Paz é, a meu ver, muito interessante e acertada. O poema é uma tensão entre exclamação e desenvolvimento, sublinhou Paz em “O arco e a lira”. Se o poema for apenas exclamação, degenera-se em expressão imediata e superficial de algo dado positivamente no terreno da sensibilidade. Mas, caso se resuma a um desenvolvimento, está condenado a tornar-se mera explicação, teorema. Assim como o arco que estica a corda da qual se pode retirar um som, a arte poética vive da tensão. No entanto, o que ouvimos, eu acrescentaria, é mais o silêncio depois do som do que o próprio som.

Fernando Andrade  – Fico imaginando seu livro tão longe, tão acintoso, em relação a certos fanatismos religiosos ou políticos neste universo desencantado de nosso maltratado planeta terra. Você acha isso e porquê.

Marcio Cappelli – O reencantamento, como esforço para captar o canto do mundo novamente é cada vez mais necessário. E a poesia tem aí um papel importante. Parece evidente que o pensamento racional, técnico-científico, estabeleceu um corte na relação dos sujeitos com a natureza e entre si que é, em certa medida, incontornável. Não seria mais possível retornar, no nosso caso, completamente a uma visão sacralizante da realidade. Entretanto, esse modelo de relação com o mundo, apesar de fornecer soluções para diversos problemas, nos colocou diante de nosso próprio fracasso tanto do ponto de vista existencial quanto civilizatório. Sendo assim, os fundamentalismos políticos e religiosos são, em alguma medida, tentativas de restabelecer o ordenamento perdido da natureza, misturando razão e encantamento. Creio que a poesia já não seria nem o retorno integral ao encantamento mitopoético tal como vivido pelo ser humano na antiguidade, seja arcaica, clássica ou tardia, nem a defesa de um ideal de Beleza tal como o entendido nos termos de certos projetos estéticos modernos. Seria importante, pelo menos pra mim, fazer com a – ou na – poesia a travessia do desencantamento, para poder, dialogando tanto com a imaginação mítica e a racionalidade conceitual e escapando às respostas fáceis e totalitárias tão comuns nos fundamentalismos de ordem política ou religiosa, dar vez ao reencantamento. Para voltar à imagem inicial, o canto do mundo só pode ser fragmentado, contingente, desarmônico e, por isso mesmo, repleto de dissonâncias. A poesia é seu eco.

Fernando Andrade –  Corpo, envelhecimento, ruína, sina, são sinais de certa finitude. Mas no seu livro ele provoca uma fuga através da beleza das imagens, do toque sensorial do signo. Sempre múltiplos de si mesmo. Comente.

Marcio Cappelli Toda a vida se desenrola sob o signo da precariedade, uma outra palavra para dizer finitude, ou aquela que tentamos evitar: morte. Penso que os poemas são também uma maneira de, na sua própria forma, manifestar a revelação de nossa condição, a saber, a de seres destinados à contingência. Somos corpo. Não um corpo imaterial, mas um corpo-aí, em devir, ou seja, no tempo. Talvez, um filme que expresse bem o que quero dizer seja “Asas do desejo”, do Win Wenders. Nele, o diretor conta a história de um anjo que não suporta mais viver a eternidade em preto e branco. O preço a se pagar pela experiência da beleza, do desejo, do toque, é a entrada na finitude.

Fernando Andrade – A tradução\criação é igual a este poema fantástico.
Como rezar seria uma tradução…

Escrever o poema
é ler a mensagem
do papel esfacelado
no bolso da calça
depois da lavagem

Fale do poema e do meu comentário.

Marcio Cappelli – Dizer algo a respeito de um poema meu não deixa de ser uma violência, especialmente com os possíveis leitores. Contudo, nesse caso, não creio ser uma contradição dizer algo. Derrida, em “A farmácia de Platão”, afirmou que a escritura é leitura, mas o “é” que une essas duas realidades também “descose-as”. É justamente para isso que o poema aponta. Encurtar-se a distância entre leitura e escrita, mantendo-se a diferença entre elas. Acredito que fica preservada, assim, a alteridade do leitor e do próprio poema, já que sua mensagem se furta a qualquer apreensão definitiva.

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