“ não creio nos tons amenos, quando sinto fome”.
(Luiza Cantanhêde)
Estive em Teresina na semana passada. Encontrei a poeta Luiza Cantanhêde para um bom papo sobre a vida e os projetos literários. Bebemos também um litro e meio de cachaça para vomitar as angústias destes dias cinzentos.
Aproveitei e comprei logo o livro novo da minha irmã, de ofício: Amanhã, sei uma flor insana (Editora Penalux,2018, 70 páginas), uma obra de capa encantadora, produzida por Raimundo André. Tem 47 poemas que narram o lirismo da crucificação do olhar, a agonia da flor despetalada e o desapego do lado de dentro da poesia. É composto por três seções: Platão sob a lâmpada rubra; olhai os vícios da trama, e, o sangue de Adônis.
Em poesia, é possível ocupar as imagens que nos salvam, e aquelas que nos atormentam também. É exatamente isso, que a Luiza faz no poema Peixe-Água, na primeira seção (2018, p.21):
Tem dias que carrego o mar no peito
(em tudo eu me afogo),
mas ouço as cantigas das marés
aliviando a saudade dos velhos
marinheiros.
Onde os peixes voam,
é lá que o tempo emerge
O tempo…
desenhando em mim
uma razão para existir e,
quando calo, é o grito pedindo socorro.
Se pelo menos uma gaivota me
trouxesse o barulho do mar…
ou um andarilho me contasse
histórias inúteis…
Se ao longe ouvisse um
velho blues acordando
o amor nos quartos mofados
dos bordéis..
Anseio pela palavra
que vem voando
num cardume
de metáforas.
O poema busca o incolor da água para sangrar. O título refere-se a dispersão, ao fluido, ao escapável que preenche a existência do eu poético. O peixe faz um contrapeso, trazendo o concreto para o grande desapego cotidiano. As imagens dos peixes voando, tornam a dor compreensível. A renúncia é sempre arrasadora!
Luiza Cantanhêde escreveu poemas relacionados ao ciclo vital das flores. Reascendeu ‘este símbolo’ desgastado, na literatura universal. Alargando o campo semântico da flor, nascida da agonia. No texto que se segue, ela vai tematizar a seca, apresentando um sofrimento unicamente dela, mas que passa a ser nosso:
A DIFÍCIL FLORAÇÃO DA FÉ
Nunca as mãos pediram tanto.
Nunca o salitre amargou tanto
na barriga vazia.
É difícil a floração da fé.
Sê paciente!
Nada vence o olhar da
semente acariciando
a plantação.
(CANTANHÊDE 2018, 26)
A lírica é originada no estrume íntimo, no entanto, pode exprimir o geral na representação humana como afirmara Hegel. As imagens da ‘Difícil floração da fé’ atravessam os túneis das nossas florações.
Na literatura contemporânea existe a sensação do desapego, mesmo sem a mudança nas cores das flores. Podemos perceber o movimento da mudança angustiada e inevitável em Desapego (2018, p.52):
É inútil fugir do desamparo
Rezar calado
Indiferente ao silêncio
E a loucura.
Inútil
Quebrar as vidraças
Fechar as fissuras
Curar o corte.
Inútil
Abrir a porta
Simular a travessia.
Somos feitos
De exílios
Segredos
E esquecimento.
Há uma relação profunda entre o desamparo e as vidraças quebradas, machucando a ferida incurável. Da poesia de Luiza brotam exílios que alimentam nossas raízes, indetectáveis.
Vale a pena ler Amanhã, serei uma flor insana, porque aprendemos todos os tons da ausência.
Texto: PAULO RODRIGUES – Professor de Literatura, poeta, escritor, autor de O Abrigo de Orfeu (Editora Penalux, 2017).
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