Em entrevista exclusiva para o portal Literatura & Fechadura, o escritor Michel de Oliveira fala sobre O sagrado coração do Homem (Moinhos, 2018), seu segundo volume de contos que versa sobre o universo masculino e a problemática do machismo. Confira a seguir os questionamentos feitos pelo crítico Fernando Andrade:
FERNANDO ANDRADE – Você usa a Bíblia e personagens bíblicos para falar do homem, de sua sexualidade e seu caráter. Qual tipo de relação ou associação você quis ter com a narrativa do antigo ou novo testamento?
MICHEL DE OLIVEIRA – Quando decidi abordar questões ligadas ao masculino, tentei identificar as estruturas do imaginário machista. O Gênesis narra que o homem veio antes e que a mulher a ele deve ser submissa. A lógica sexista, binária e favorecedora do masculino está desde as primeiras páginas e se desenrola ao longo de toda a Bíblia. Então decidi pegar fragmentos dessas narrativas bastante conhecidas para apresentar as questões que me motivavam a escrever. O homem, assim como as sagradas escrituras, se pretende intocável, me pareceu frutífero colocar as mãos nisso para modelar o barro com outras formas.
FERNANDO ANDRADE – Você se concentra muito no corpo masculino e suas tensões, suas fragilidades, impermanências. Ao mesmo tempo que usa noções e conceitos de gênero, para deslindar o homem perante a sociedade que de certa forma o apoia, o reflete, o consente. Como desconstruir um antropologismo cultural onde o machismo é tão aceito quanto corroborado, até por mulheres que apoiam visões do homem másculo. Digo isso por vejo que certas linhas de classes sociais que aderem ao tipo de comportamento do homem, e outras que atacam e desconstroem esta constituição do macho estereótipo. Fale um pouco disso.
MICHEL DE OLIVEIRA – Como a base da nossa sociedade é patriarcal e machista, mulheres e homens são adestrados desde crianças para encenar os papéis de gênero. Meninas vestem rosa e meninos vestem azul, dizem. E criamos estruturas reguladoras para que a encenação seja mantida. Isso acontece mesmo nos locais que se dizem progressistas, como na universidade. Vivemos uma fratura tão grande do masculino e do feminino, considerando esses conceitos como potências do humano, não necessariamente ligado ao sexo biológico e ao gênero, que limitamos nossas existências como homem e muito mais as das mulheres. Por isso acho necessário falar da vulnerabilidade dos indivíduos masculinos, de como eles se sentem inseguros, com medo e acuados diante da possibilidade reprodutiva da mulher. Ao que parece, os homens não sabem lidar com essa potência de procriar e tentam a todo custo, inclusive com violência, limitar a vivência das mulheres para que se torne tão estéril quando a da maioria dos indivíduos machos. Isso é um grande erro. Deveríamos, ao contrário, observar a potência das mulheres e aprender com elas a resistir e se regenerar. Assim nós, homens, poderemos assumir a insegurança que é viver. Não somos exemplos de nada, já chega de fingir heroísmo para mascarar nossas fraquezas.
FERNANDO ANDRADE – Há uma espécie de apresentação antes dos contos narrativos, onde você assume certos temas ou tópicos a serem aprofundados no conto em si. Por que adotou esta marcação na segunda parte do livro? Seriam uma espécie de aforismos sobre sexualidade do homem?
MICHEL DE OLIVEIRA – Sim, são aforismos bem ao modo filosófico, que criam máximas que parecem irrefutáveis, mas não passam de blefes. Optei por eles porque a filosofia com suas verdades é uma das manifestações do masculinismo. Então me apropriei dessa estrutura para dizer algumas verdades sobre os homens. Uma tentativa de inversão do jogo, calçar ferraduras no ferreiro para que ele veja como não é confortável.
FERNANDO ANDRADE – Queria que você falasse um pouco do tom bem irônico da voz do narrador. Por que adotou esta posição perante os temas que ia dissecando o livro todo?
MICHEL DE OLIVEIRA – Como descrito no texto da orelha, mesmo o fracasso é narrado de forma grandiosa, para dar dignidade ao homem. Não queria isso, então a voz narrativa irônica e sarcástica surgiu de forma muito espontânea, como contraponto ao tom solene como as questões ligadas aos homens são tratadas. E mais uma vez foi uma inversão do espelho, as personagens femininas e tudo o que não é branco e eurocêntrico sempre foi retratado de maneira caricata e estereotipada pelos escritores homens. Então quis oferecer do próprio veneno ao apresentar o homem como objeto de escárnio.
FERNANDO ANDRADE – Até que ponto o determinismo biológico, a evolução das espécies estudadas por Darwin, toda esta linguagem biológica sobre a espécie humana atrapalha ou ajuda nesta discussão sobre alteridade entre homens e mulheres. E como teu enfoca esta linha determinista?
MICHEL DE OLIVEIRA – O homem é tão diferente da mulher assim como um homem é diferente de outro homem, e uma mulher é distinta de outra mulher. A maior parte das coisas que dizemos para diferenciar machos e fêmeas não passam de falácias. As diferenças existem, mas elas são muito menores do que a semelhanças. E isso configura um paradoxo: somos semelhantes apesar de distintos. O único determinismo incontornável é que vamos morrer e temos medo disso. O resto são coisas que fazemos para ocupar o tempo e fingir que o fim não nos assombra. Nossa vulnerabilidade deveria ser o ponto de contato e o meio de encontrar a alteridade. Mas nós, em especial homens, queremos parecer fortes e importantes, aí atrapalha tudo.
FERNANDO ANDRADE – Por que escritores homens têm tanto medo de se desconstruir narrativamente em suas histórias? Você acha ainda que o mote ou tropos de uma “masculinidade” de autor que precisa ser questionada ou não?
MICHEL DE OLIVEIRA – O machismo resulta em uma esterilidade e aversão extrema do outro, e isso advém, ao meu ver, do medo reprimido e dissimulado. Então para tentar se convencer que é forte, poderoso e potente, o homem precisa repetir isso o tempo todo, como uma ladainha. E repete com tanta insistência por saber que não é. Talvez por isso seja tão difícil para um homem se abrir para outras possibilidades narrativas, seja como escritor ou como leitor. E quando faz, cai no estereótipo, pois é incapaz de se deixar afetar por uma existência que não a sua. Eu observo as reações das mulheres quando leem O sagrado coração do homem, são capazes de se afetar por um conto sobre fimose, calvície ou impotência, mesmo que isso não tenha relação direta com o universo delas. O contrário, no entanto, não acontece. Os homens se afetam muito pouco, se é que se afeta, com aquilo que não faz parte do seu universo. É a famosa frase: “isso é coisa de mulher”, o que significa que deve ser ignorado.
Então considero que a masculinidade do autor precisa ser questionada sim, tanto para que isso seja explicitado, quanto para que novas narrativas possam surgir desse confronto. Por que dizemos literatura feminina, literatura gay, literatura negra, enquanto os escritos dos homens brancos classe média é só literatura, sem complementos? Um dos males do machismo é cristalizar narrativas, e vivemos um tempo histórico de narrativas que já não nos ajudam a dar sentido à vida, por isso nossa sensação constante de crise. Então profanar a lógica machista da literatura talvez possibilite contar outras histórias.
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