“Eu tenho um olhar que penetra as camadas cinzentas das grandes cidades” – Três poemas de Rafael Quintiniano

 

 
ERA O TEMPO

À J.M.

Dançavas pé ante pé no plano do infinito.
No tempo em que a primeira estrela surgida no universo
Fez vibrar um imenso círculo concêntrico de luz na escuridão.

Era o tempo do Verbo Primordial
Mas nada se sabe sobre o Sopro da Vida
Sabe-se da membrana esclerótica do olho de Deus
Diante do qual todos nós perambulamos .

Era em um tempo
Longe das coisas do homem
Que se escavasse um sonho longínquo
Chegaríamos à primeira linhagem de uma pedra

Mas a tua origem permaneceria insondável.

Minha memória exterioriza-se
Mas é varrida pelo vento
De cem mil páginas viradas.
Para alcançar-te num delírio
Segui pelo sentido oposto ao dos nomes
Todos que os homens inventaram
E cheguei até onde estamos nós
Como dois mistérios soltos no cotidiano

– cúmplices e esperançosos –
Como em tantas tardes quando observávamos
O sol , um impositio manuum”,
Acariciando flores artificiais

 

 

IPÊS

Eu tenho um olhar que penetra as camadas cinzentas das grandes cidades e enxerga fenda por fenda o percurso entre o conciliábulo dos ferros e o conluio dos urros clausuras que abrigam o suor de tantos braçais as pequenas mortes de suas forças como baleias encalhadas na poeira suspendem em meio ao caóptico movimento das capitais como que correntes e invernias de angústia e cansaço penduradas pelos outdoors as minhas crises de identidade com os dizeres “INDISPONÍVEL AQUI” e o meu número de telefone logo abaixo justificam um sem-número de fracassos e passos lassos quem já viu um trailler com uma propaganda mal feita debaixo da garoa conhece grande parte do modus operandi desses tipos de lugares e se comove e apura faz a prova dos nove e mesmo que os ponteiros me ceguem eu sigo eu sigo não sei como rastejo esfolando o fole pela Brigadeiro Luís Antonio avistando a Sé com o velho olhar da velha Esperança gasta invulgar como cachorros beges vadios os articulados puxados por demônios e managers batedores de meta rangem de dentro de minhas tripas e outros infernos vicinais em cujos postes se recostam os estripadores de idílios era mais de meio-dia quando entrei num sebo do centro da cidade e sem saber rezar formigamentos nenhuns li num livro quase devorado pelas traças que os ipês florescem nas grandes cidades enquanto nós só sobrevivemos

 

 

POEMA DA FOME

I
A fome nasce entre ninhadas de arames farpados
no limiar da palavra fome
dentes cegos que nada cheiram nada ouvem nada sentem
só mastigam

nos bocejos da palavra fome
revoadas de abutres camuflados de tempestades
tavernas de Pantagruéis enrabados
por garrafas de cabernet

A outra cabeça se chama sede
é tão alta quanto a primeira
Fora o grande rumor do torso
Imbricado em grãos de areia
Fala enquanto espumareja
No canto esquerdo da boca
Desertos de aridez amarela
O sal a areia o vinagre
Desarranjados garganta a dentro
Seguem irmanando em ciclos
Ambiciosos projetos de morte

Sua língua viscosa e visguenta
O âmbar escuro dos cabelos
Lilith tatuada na escápula
E no pescoço
Um colar de ossos de gente
de toda cor credo e classe social
A fome da sede a
Sede da fome

 

II

Sístole e diástole dão lugar ao cabo de guerra dos intestinos
o corpo inteiro metamorfoseando-se em boca
a
boca do fígado
a boca do osso
a boca do rim
a boca do sangue
a boca do olho morrendo
a boca da boca cerrada
a cabeça da boca vazia

a boca dos braços pendidos
a boca dos pés claudicantes
a boca-inconsciência
a boca-apopsiquia
a boca devorando outra boca
que devora outra boca
que devora mais outra
entre dois espelhos na penumbra
há uma boca escancarada

 

III

Meninos homens ventrudos
Beijados lambidos por moscas
Verdes azuis famintas
Quantos morreram comidos
pela palavra Estômago?
Nem a cara de george washington
num papel com o número cem
paga a pele que se despedaça
paga a pele que se despedaça

As costelas que saltam pulam
aos nossos olhos saciados
Nem tanques de guerra explodem
Os pães duros tal pedra
Casco couraça da fome

Quem são estes os iludidos
Que pensam que o império da fome
Está na áfrica ou na síria
Mas ela está em nossa alma
Em nosso sangue cativo
Nasce morre conosco
E nos devora após mortos

 

IV

Quando a fome aperta
o diabo se abaixa
pra comer o seu pão amassado
com grande vergonha talvez
e orgulho ferido e empáfia
o orgulhoso o sisudo o sagaz
quem são estes diante da fome
que máscaras grotescas carregam
com presas saliva rosnando

que ouro que prata que pedra
preciosa vale ante a fome
que música sublime ofusca
o ruído rompante das tripas
e o tempo que anda o devir
quem sabe Heráclito sonhava
com o tempo metáfora da fome.

 

 

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