FERNANDO ANDRADE – A palavra claro pode dar sentido de confirmação ou claridade, luz. foco, olhar sem véus. De acordo com a variedade de personagens com muitas nuances que percorrem suas narrativas, como se dá este tipo de relação entre o conteúdo e o título?
THIAGO MEDEIROS – O sentido maior que desejei sobre esse título é o caráter de confirmação, esclarecimento, descoberta por parte das personagens. Cada uma delas, de certa maneira, está diante de um processo de descoberta, ainda que venha, por exemplo, por meio da decepção – que também é uma forma de descoberta. O título, inclusive, foi objeto de debate por parte do meu grande amigo e mestre Raimundo Carrero. Ele não concordou com ele – nada que escrevo passa sem o crivo do meu eterno professor, o que não significa que concordemos em tudo. Disse que meu mundo não era claro, por não haver luzes. Seria um mundo de obscuridades. Concordei em partes com ele, mas justifiquei também pelo uso da ironia, bem como parece ter uma característica de claridade no mundo em volta das personagens, e não na personagem em si, afinal claro é o mundo à volta dela, e não necessariamente o próprio mundo das personagens.
FERNANDO ANDRADE – Há uma certa fala da decomposição física com muitas imagens de desintegração física do corpo sepulcro, mas ao mesmo tempo a vida tem uma latência por existir nos personagens. Como você desenvolveu estes aspectos da narrativa?
THIAGO MEDEIROS – Para mim o corpo é o grande campo das metáforas, bem ao estilo do título de Hilda Hilst, afinal, Tu Não Te Moves de Ti. Os processos de metamorfose do corpo ao longo de seu desenvolvimento da juventude à velhice, enquanto de certa forma a essência da humanidade não envelhece, faz com que essa matéria externa não acompanhe o mesmo ritmo de nossa própria paisagem interior. Mantemos os desejos, os anseios, as dúvidas, os sonhos, e fisicamente não podemos mais acompanhar tudo isso. Daí a ideia da figura do corpo sepulcro, espécie de ente limitador da própria potência humana. Daí a necessidade de equilibrar os movimentos internos e externos da narrativa, o que é corpo e o que é percepção.
sso é tratado de forma bem clara em determinadas textos. Desde a forma mais metafórica, como no primeiro conto, Desatinado Resfolegar, até uma abordagem mais direta, no caso de Sobre Dentes Dessanguíneos, que trata do deslumbramento de uma criança ao descobrir – aqui finalmente a clareza de como é o mundo em volta – que a bisavó, tratada como fardo pelos outros familiares, um dia já teve o que pode ser considerada uma vida em plenitude.
FERNANDO ANDRADE – Tua linguagem tem um colorido barroco. Você faz um excelente exercício de cenas com uma imagem do enredo muito cinematográfica da ação. Fale um pouco disso.
THIAGO MEDEIROS – Há alguns anos, quando comecei a escrever de forma mais disciplinada e – se é que isto é possível – racional, percebi que meus textos tratavam muito do cenário interior das personagens, entalhando assim praticamente apenas monólogos interiores em fluxo de consciência. Até é interessante, mas faltava o equilíbrio com o cenário externo. Não me considero um bom criador de cenários estáticos, do tipo que descreve uma rua, um quarto ou determinado objeto que possa ser chave do enredo, então passei a perseguir as ações, os movimentos das personagens, agindo literalmente na função de câmera indiscreta e paranoica das suas ações. Um exemplo está em “Desatinado Resfolegar” quando o personagem percebe o amigo de infância como um ente desejado – belo eufemismo para dizer que sentiu tesão – a partir dos movimentos do pomo de adão do outro, descobrindo também ali a própria sexualidade e as incongruências sobre o próprio corpo.
Outra questão é que, à medida que meus contos ficavam mais longos, comecei a me perder nos ganchos entre cenas, por uma questão única: sou muito ansioso. É tanto que, para controlar a ansiedade do impulso criador, costumo escrever tudo em cadernos, para então revisar, ler em voz alta para acompanhar o ritmo – para mim a principal questão da estética artística é o ritmo, no fim tudo deriva da musicalidade -, revisar novamente, reescrever e finalmente ir para o computador, que sempre considerei com cara de trabalho terminado. Ainda assim, a dificuldade para esses benditos ganchos de transição. Foi quando decidi repartir os contos em subtítulos. Facilitou o meu trabalho para executar cada cena quadro a quadro, da mesma forma que um roteiro, e então as transições passaram a ser exercidas de forma mais brusca, mas que tornavam-se mais harmônicas em relação a todo o texto.
FERNANDO ANDRADE – O livro tem uma costura curiosa. Os contos parecem que continuam em duplas ou tercetos como se fossem blocos narrativos. Como pensou o livro desta forma onde há certos personagens que parecem que perpetuam nos cenários e por cima dos títulos?
THIAGO MEDEIROS – Isso tem muito a ver com minhas obsessões literárias. A matéria-prima de qualquer manifestação artística sempre será a mesma. A miséria humana. Não importa se esta é tratada a partir da ironia, do humor, do sublime, do belo, do feio, do arrebatamento. A miséria humana é que move a criação. Então costumo tratá-la a partir de três grandes questões. O corpo, a memória e a religiosidade. Essas são minhas obsessões, que procuro adaptar em cada contexto sob a pulsação narrativa necessária.
Tirando dois contos, “Sal. Tangos, Boleros e Outras Despedidas” e “A Paz Na Bandeja de Ágata”, todos os outros textos foram escritos entre março e agosto do ano passado, logo quando aderi a um Plano de Demissão Voluntária (PDV) no Banco do Brasil – por incrível que pareça fui bancário por catorze anos. Então estava sempre ainda encharcado do conto anterior quando começava outro. Já havia a questão das obsessões que me movem, o período que levou de um para o outro também influenciou, inconscientemente acabei deixando um rastro de linearidade entre eles.
Há uma exceção consciente, que é no caso dos contos “Amargo Xilofone Para Suicidas” e “Os Teus Retalhos Eu Guardei”, que a priori foram concebidos na forma de um único conto. Mas falei antes sobre ritmo e musicalidade nas narrativas, e isso envolve pausas, intervalos. Precisava dar tempo a quem lesse para compreender a visão de Seu Gerônimo, ali imerso no desejo de tirar fotos dos insetos que sairiam da exumação dos ossos do filho falecido, e então introduzir a visão da mãe sobre tudo aquilo, e isso não teria a mesma força se estivessem na mesma página – literatura também é uma experiência visual -, na mesma continuidade, no mesmo bloco narrativo. Tudo é música, e o compasso me pedia distância entre as cenas, pois eram movimentos diferentes demais para ficarem sob um mesmo título.
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