Cerzir o corpo do ser e do mundo em Nervura
Alexandra Vieira de Almeida – Escritora e Doutora em Literatura Comparada (UERJ)
Carlos Orfeu, no seu novo livro de poemas Nervura (Patuá, 2019), realiza uma verdadeira amputação linguística com versos curtos e afiados sem a prolixidade do discurso fácil e desnecessário. A pele refaz o corpo do mundo, fundindo o ser e a realidade numa mesma esfera de carnalidade. Mas o corte sangra, fere a carne dura do mundo. A seguir, o poema que fala deste cerzir o mundo com fios e agulhas do real imaginário mais presente, que solidifica a concretude do terreno: “na nervura/rútila/flamejam/punhais//chagas/flechas/cabaças//dos orixás/em tua carne/canto abissal/outra pele/se refaz.” Para este cerzir, a palavra “nervura”, como título do livro se revela como conhecimento da costura das coisas em meio ao vazio da espera silenciosa da modelagem dos nexos. “Nervura” é uma palavra também que está no campo de conhecimento da costura, mostrando o lado feminino do poético, que é gerar, gestar os sentidos em efusão sonora. A linguagem feminina das palavras costura a alma feminina das coisas que são feitas de delicadeza, mas ao mesmo tempo, de crueldade. A criação poética se dá pelo símbolo da noite, da escuridão e do implícito. As palavras em Carlos Orfeu são escondidas por uma película fortemente metafórica.
No site “Algodão Cru” se explica sobre o significado de nervura, título deste livro primoroso de Carlos Orfeu: “Nervuras são pequenas pregas em alto relevo, frisos, que podem ser feitas pela agulha dupla na máquina de costura doméstica”. As nervuras, simbolicamente, representam o alinhar dos espaçamentos, há sobras entre as pregas, nos apresentando a visão da ambiguidade e multiplicidade do literário. Duas esferas do saber se interconectam, nos antecipando o vazio, o silêncio, necessários ao tecido, à veste estilhaçada do mundo. O real se comporta como um tecido a ser urdido pelas agulhas enigmáticas da literatura. A poesia de Carlos Orfeu tem o dom da perplexidade. O livro é dividido em duas partes, “da carne” e “do osso”. Os dois movimentos se complementam, formando uma ambivalência grandiosa. A carne é a expiração da poesia, onde as palavras são expelidas pelo ser como uma realidade necessária e vital do corpo. O osso, na sua solidez e, ao mesmo tempo fragilidade, é a nossa inspiração inicial, o motor que dará sentido aos versos, após esta brancura impoluta do vazio, prestes a trazer à tona uma multiplicidade de sentidos vibrantes e metafóricos.
No poema que abre o livro, “a carne é escrita”, temos: “a carne amanhece/cerze o abismo//extingue o tato/na lâmina da luz//abre a paisagem/com a fala do olho//o grito do osso/nas lascas dos lábios//não chega até o deserto/o hálito de outra manhã//não chega até o gesto/o pássaro da tua voz”. Aqui, como em outros poemas, o sentido da visão é recorrente como seu apelo ao olho da voz, pois ver é saber, conhecimento. A poesia de Carlos Orfeu é pictórica, com arranjos que se adensam nos nossos sentidos, receptáculos que são da sabedoria bastante marcante da carne que perfura até o osso das ideias. O gênio Leonardo da Vinci, assim disse sobre a visão: “Não vês que o olho abraça a beleza do mundo inteiro? […] É janela do corpo humano, por onde a alma especula e frui a beleza do mundo, aceitando a prisão do corpo que, sem esse poder, seria um tormento [,,,] Ó admirável necessidade! Quem acreditaria que em espaço tão reduzido seria capaz de absorver as imagens do universo?” Neste sentido, na poesia de Carlos Orfeu, encontramos esta fusão entre alma e corpo, entre o sutil das ideias e o olho dos aspectos físicos da experiência subjacente de toda a humanidade.
A dicotomia alma/corpo é improdutiva. Em Orfeu, temos uma poesia que evoluciona, trazendo estes elementos unidos pelo verbo poético. O poeta aqui em questão apela para a vida, para a matéria que nos envolve e nos caracteriza, pois tudo é matéria, até mesmo nossas ideias. No conhecimento da Teosofia, a alma é uma matéria mais sutil, mas mesmo assim é matéria. Nossa condição física, como humanos, traz o sofrimento do corte que sangra e se petrifica numa cicatriz, como lembrança de deus na nossa pele: “deus é uma cicatriz abandonada na carne”. A carne é resistência, pois se refaz da morte em vida, em movimento criador, da gestação infinita de nossa pele dual em camadas profundas que se adensam até o osso do silêncio e da introspecção. Além destas alegorias linguísticas, Orfeu produz imagens impactantes sobre a condição do negro, traduzido em linguagem poética por ele. Aqui, metonimicamente, da parte para o todo, Carlos é a representação de todas as dores do negro a partir de suas palavras que ofertam os segredos da vida e da liberdade. Em “Calabouço do açoite”, temos esta outra voz representativa: “carne -/coisa no/calabouço/do/açoite//projetada/no ventre/de/ferro//o /sol/da colheita/de/sangue//não coagula/no quilombo do grito.” Aqui, podemos ver as imagens do açoite, do corte que sangra pela utilização de versos curtíssimos, amputados pela faca fina dos vazios textuais. Encontramos até mesmo uma
única palavra monossilábica num único verso, revelando toda dor e sofrimento do silêncio em meio ao grito, da vacuidade em meio à linguagem açoitante de Orfeu, com palavras duras e fortes.
A linguagem em Carlos Orfeu é um labirinto negro feito de versos de beleza e silêncio. No poema “Nervura”, temos as imagens do claro e do escuro, com o fundo preto e palavras em branco. Temos, assim, o outro lado da cor e vice-versa. As versões da cor revelam esta linha tênue entre o murmúrio e o grito. Podemos verificar este jogo textual também em “um lugar de ser casa em tua língua”, em que neste verso encontramos sua solidão seguida por um grande espaço em que os outros versos se transbordam em sentidos moventes e ambíguos. A distância cria uma proximidade, a afetividade, o elo entre os versos. O silêncio é a morada do ser, sua meditação: “quando outra carne adentra o desejo/faz da distância a morada próxima”. Dessa forma, há um vão entre as linhas fiáveis da aranha poética, dos versos e uma nervura entre os tecidos, uma pausa para que não nos sufoquemos com as palavras. A tagarelice cessa, a noite dos versos tem seus segredos, é feita pela pele do silêncio que constrói o poema, a carne da língua. O sentido do obscuro torna-se cristalino como as águas, a liquidez do mundo se solidifica, em Orfeu, na carne da linguagem.
O osso, na imagem final da caveira, também pode ser traduzido como símbolo da morte, enquanto nervura é símbolo da vida. A fragilidade do corpo adquire força e movimento a partir das palavras que nos unem e nos ligam numa mesma humanidade. O osso com sua dureza e resistência aparente nos traz a liquidez da vida também. A morte é também geração, apesar de sua solidão e a linguagem entre os seres se faz vida carnal que acoberta os ossos das palavras cruas e secas. O mar de antes se inaugura como imensidão em frente ao caos. Sua poesia é pensada de forma concreta e abstrata a perfurar o chão das memórias da vivência. Temos aqui a delicadeza das palavras carnais que tocam tudo a sua volta com o olhar de fera. Temos o uivo, a fera dança no infinito do ser e que pode ser ouvido na sutileza das palavras densas como a carne e puras como os ossos. Somos feitos do humano e do inumano, daquilo que nos transcende, mas que é feito de pele e dureza, fragilidade e força, vão e preenchimento.
Em Carlos Orfeu, podemos ver as metáforas que perfazem o voo dos pássaros e de Ícaros que querem alcançar a luz, apesar da escuridão cegante dessa mesma luz. Neste poeta maravilhoso, encontramos o misticismo da matéria na sua vertente mítica. No corpo de deus encontramos a face divina e dupla da palavra que é fogo, vento, água e árvore. No poema de Fernando Pessoa, temos: “O mito é o nada que é tudo./O mesmo sol que abre os céus/É um mito brilhante e mudo -/O corpo morto de Deus,/Vivo e desnudo”. A natureza sacro-profana do mito também comparece na poesia de Carlos Orfeu, que sabe como ninguém, representar o que vem do alto nas vestes terrenas da matéria que apodrece e morre. A força viva de seus versos ultrapassa o grilhão que nos prende a um mundo apenas feito de caos e violência. Sua violência carnal é ao mesmo tempo frágil como os ossos e resistente como a carne e nervura da realidade que nos cobre com seu manto de dor. Uma armadura frente às intempéries da existência.
Portanto, a nobreza da poesia de Carlos Orfeu é cerzir com pele celeste das palavras uma indumentária feita das cores múltiplas do real, aproximando o ser e a realidade como esferas representativas de um mesmo corpo de sonhos e de delírios. Apesar deste corte profundo, sua poesia nos fala da beleza da vida que pulsa na nervura de um corpo que vive e se desnuda para os leitores. Estes resistem à morte da palavra pela figuração de um espaço simbólico que requer inteligência e destreza em interpretar nos vazios da teia de aranha, nos quadradinhos desta rede esférica, os sentidos da vivência de toda a humanidade. Sua poesia alcança o silêncio das estrelas como num casulo sideral, mas também se adensa na terra enigmática dos versos que têm precisão, enxutez e riqueza linguísticas. Sua palavra exata e inaugural, logicamente pensada e profundamente sentida, nos remete ao dom da criação de um corpo que se descasca, tirando véu ante véu, das sombras do mundo, revelando a face palimpséstica da sua poesia necessária e
verdadeira. Que seu livro alcance cada vez mais leitores por sua voracidade delicada, paradoxalmente, em nos atirar para os abismos dos corpos e das almas.
Alexandra Vieira de Almeida é poeta, contista, cronista, resenhista e ensaísta. Tem Doutorado em Literatura Comparada (UERJ). Atualmente é professora da Secretaria de Estado de Educação (RJ) e tutora de ensino superior a distância (UFF). Tem cinco livros de poesia, sendo o mais recente “A serenidade do zero” (Penalux, 2017). Tem poemas traduzidos para vários idiomas.
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