A literatura é uma fábrica
com miolos azuis
manhãs burguesas,
telefones ou telemóveis que vibram com os lábios
um automóvel, um prédio
um fascismo vulnerável
num horizonte proletário,
a lógica escorrega-me
diretamente da gargalhada,
mas o meu género é subgénero
asfixiado,
transpirado
transpira pelas paredes.
que venha o fado
ou então o gado, para facilitar,
talvez o gado.
Liberdade
a liberdade é deixar-se estar a meio dos desejos
é uma procura de ardores
uma rua onde Ramos Rosa adiou o amor.
os séculos sucederam-se
no ventre da lenha
onde ardem todas as bandeiras do mundo.
deixa-me na margem do Outono
porque a liberdade é cinzenta
como os braços da terra
falta-me procurar a liberdade
na cintura da chuva, no riso da arma.
quero desfiar a voz para encontrar a retórica do medo.
tantas palavras começadas por a: acaso, ação, ator, adultério,
amor
mas eu quero renascer das balas
e trazer-te livre
derramar-te no oceano com o mesmo sangue dos atores,
do adultério e do acaso.
não se ama a liberdade,
bebe-se liberdade
misturada com espumante e terror.
é o rasto da revolta
é o desprezo pelo erro.
hoje liberto-me de ti, amor
e tudo é um acaso gelado,
uma ação livre e miserável.
As sextas-feiras
desaparecem em cima da mesa.
depois reaparecem no verão
entretanto passeamos de bicicleta
sobre os significados das coisas
mas os passeios são de domingos.
as sextas-feiras tocam-me a pele
ao de leve
aparecem agregadas ao amor próprio.
as sextas-feiras tristes rastejam
pelo fim da tarde prometendo alívio
assegurando amor e descanso,
esperança tão profunda como os esgotos.
à sexta-feira escrevo o meu nome no selim
da tua bicicleta
pode ser este o fim-de-semana em que me chamas.
há anos que todos os dias são
sextas-feiras.
Sara F. Costa (Oliveira de Azeméis, 1987) é uma poetisa portuguesa que reside em Pequim. Publicou até à data cinco livros de poesia. A sua obra tem sido galardoada com diversos prémios literários nacionais. Foi autora convidada do Festival Internacional de Poesia e Literatura de Istambul 2017 e em 2018 fez parte da organização do Festival Literário de Macau e do Festival Internacional de Literatura entre a China e a União Europeia em Shanghai e Suzhou, China. Tem poemas traduzidos e publicados em mais de sete línguas em várias publicações literárias por todo o mundo. Tem formação académica na área do Mandarim e traduz poesia chinesa para português. Coordena eventos literários no coletivo artístico internacional sediado em Pequim, Spittoon e fundou o primeiro workshop de poesia da cidade.
Livros publicados:
– A Melancolia das Mãos e Outros Rasgos (Pé de Página editores, 2003);
– Uma Devastação Inteligente (Atelier Editorial, 2008);
– O Sono Extenso (Âncora Editora, 2012);
– O Movimento Impróprio do Mundo (Âncora Editora, 2016)
– A Transfiguração da Fome (Editora Labirinto, 2018)
Hummm. Extremamente galardoada. Tamo bem, hein?