Fernando Andrade
Crítico de Literatura e escritor
Seria perigoso possuir certa intimidade numa cela de prisão? Num lugar que tem a palavra reclusão e ao mesmo tempo, participação, pois uma cela possui a célula da companhia de outros detentos. Estar num lugar apertado e fechado em si, tirando ou vendando o acesso à liberdade. Há certas manhãs de conhecer a ti mesmo como melhor conhecer o outro, que por uma contingência de destino lhe chega ao conhecer, não pessoalmente, mas por carta.
Podemos avaliar alguém através das palavras do remetimento de uma carta propondo um jogo; um embate entre adversários com peças próprias, aqui não importando a cor, mas muito o status, em que se joga pelo que pode se ganhar ou perder, ministrando a liberdade como ponto de embate entre o juízo de valor da vida lá fora. Como se dá um jogo de xadrez? Jogado pelo excesso de contingência entre estar livre, mas ao mesmo tempo preso ao corpo e as ideias, e estar celado apostando no futuro em todas as fichas ou cavalos ou bispos, tomando cada lance ou passo como uma contenda entre vida e morte, consciência e escrutínio do amanhã.
Luiz Eduardo de Carvalho realizou em seu novo livro, Xadrez, editora Patuá, um romance epistolar entre um detento que foi acusado de matar a esposa e o amante e está condenado à perpétua, e um português que acaba de chegar ao Brasil, que tem a monarquia como índole política. Estamos no ano de 1977, plena ditadura militar. O texto entre os dois oponentes é entremeado de afeto cada um querendo saber do outro.
Nesta relação entre a passagem dos anos e casualidades, porque estabelece conexões entre vida pessoal pelo menos de quem está livre e solto, para Joel o sentido de sua pessoalidade é sempre pelo viés coletivo, de que perpassa este núcleo prisional. Quando o português sabe dele, sabe também de seu colega de cela, da contextualização geral do presídio como um organismo vivo e complexo. Portanto, ao jogador português cabe o recurso da contingência. Embora ele seja o mais sincero possível em seus devaneios pessoais e ativistas em prol de uma postura mais conservadora possível.
A vida de fora tem esta margem de esconder margens, a liberdade mostra a face mais certa, mas a postura do jogador perante os atos e fatos que postulam a ação em transcurso. Manuel, portanto não se prende ao escapismo de uma falsificação. Tenta ser o mais sincero possível dentro de um escopo que inclui marginalizar minorias. O escritor estabelece uma dinâmica muito peculiar entre a troca de cartas, espelhando uma realidade social entre vieses e extratos muito distintos. E como é interessante antecipar cronologicamente as ficções que perpassam este tabuleiro enxadrezista sobre alteridades entre passado e futuro; e entre escolhas já feitas, Joel e sua sentença, e os porvires desconhecidos.
É como num jogo dialético onde já se sabe as respostas. Mas claro que ao narrador que postula tal conhecimento, isto é jogado com tamanho teor intuitivo. Na verdade será que estes dois jogadores, em especial, o Joel sabe das fraquezas do amigo? Se beneficiam com o conhecimento da voz narrativa? Ou para eles estará blindada como uma cela: a alquimia entre o velado futuro e o pretérito perfeito.
Os lances são trocados por cartas e emblemáticos lances coordenados pelo espaço mental do tabuleiro. Joel parece velar sua segunda pessoa, como uma máscara grudada ao rosto. A relação da jogada com o teor pessoal de ambos são muito casuais, e não denota pré-juízo ou valor de manipulação emocional, se uma jogada é posta no início do texto não cabe supor que ela terá uma prática diferente se colocada na última linha da carta.
Qual jogador prioriza escolhas ao botar o lance entre recomendações benquistas de afeto?
Aqui na verdade estamos lidando com spoilers sobre o próximo advento da maquinação surpresa do xeque ao adversário. Portanto vida e jogo se espelham no reflexo do espelho de dois seres que buscam saídas ambos por motivos tão diferentes de uma condição humana quase satreana.
Cotação: Excelente
Puxa, muito obrigado. Você foi deveras generoso! Sinal de empatia entre obra e leitor astuto, capaz de sondar alguns dos mais inacessíveis tabuleiros desse jogo plural que tentei sobrepor em camadas a serem decupadas até revelarem o pó, o xeque-mate do embate entre vida e morte!