“Nunca gostei do som da minha voz”, ela me disse da sua mesa. Eu sabia que ela falava comigo, pois estávamos sozinhas no salão. Virei-me fazendo ranger a borracha da cadeira no chão. A ruiva apoiava o cigarro entre os dedos e me olhava absorta conforme soltava a fumaça em intervalos. Um transe, imaginei.
Ela continuou: “Eu mesma assoprei as velas do meu barco, vago por aí catando as migalhas que a vida me joga”. Disse cada palavra sem pressa, saboreando. Seus olhos, por detrás da fumaça, aguardavam alguma reação minha. Em meu socorro, vi a porta da cozinha se abrir. Por ela, veio o garçom. Ele cruzou o salão, parou em frente à mesa da ruiva e, enquanto adicionava café à sua xícara pediu, com uma entonação que não soava inédita, para que ela não fumasse. A ruiva pareceu não perceber sua presença, deu um trago e em seguida apagou o cigarro no pires. Estaria chorando? Agora sem fumaça, posso ver que seus olhos estão inchados. Não tenho certeza. “Sabe”, ela disse de lá. “Hoje eu sinto um profundo desinteresse por tudo o que antes me despertava excitação. Como se eu estivesse inoculada pela invisibilidade ou envenenada”, completou. Eu pigarreei: “Depressão?” Ela deu um sorriso profundo, daqueles de doer o rosto, e estacionou ele no rosto mais tempo do que seria o esperado. Sua mão suspensa no ar como se segurasse um cigarro invisível, mostrava unhas vermelhas bem feitas. Sorveu um gole de sua xícara fumegante e com uma expressão vazia, puxou o ar de forma sonora com o rosto virado para o teto. Eu fiquei aguardando para ver se a conversa continuaria, se o fôlego renovado viria acompanhado de mais uma frase enigmática ou se podia voltar para meu livro. Neruda, Vinte poemas de amor, o título. Nessa época, eu andava numa fase romântica com a cabeça cheia de rimas e floreios. A ruiva me encarou, disse: “Tem coisas”, e parou como se buscasse no ar as outras palavras para engatar, “que ninguém nos ensina. É um daqueles mistérios da vida, simplesmente se sabe e pronto”, e estalou os lábios satisfeita com sua colocação. Fez-se o silêncio novamente, afinal, eu, deslocada naquela cena, não sabia o que dizer, e calculei que nenhum garçom viria novamente em meu favor.
“O que você está lendo aí?”, ela disparou. Eu levantei a capa do meu livro. Ela balançou a cabeça, como se concordasse comigo e inspirou fundo pelo nariz: “Se nada nos salva da morte, pelo menos que o amor nos salve da vida. Pablo Neruda”, ela disse. Então a ruiva era do tipo que colecionava aforismos. Fiz um ar grave, vasculhei fundo nas minhas sinapses sem nada pescar e quase complementei sua citação com um “Grande Neruda”, para não parecer passiva demais. Me contive. Minha língua grande sempre me colocou em apuros e não seria agora que eu daria combustível para que com ele a ruiva atiçasse a fogueira. Me mantive agarrada ao meu ar grave, fitando ela de onde estava, dois metros a nos separar. Fiquei esperando seu próximo movimento, ali eu era apenas coadjuvante. Olhei aquela mulher faminta de companhia, toda ela exalava um cheiro de abandono, ocupada em alimentar seus monstros interiores. Com a respiração alterada, a ruiva engoliu em seco e voltou a falar, misturando as palavras como se usasse a colher de açúcar. “Não confie em ninguém. Muito menos em homens de perna fina”. Dito isso, se levantou erguendo a cadeira para não rasgar o chão em ruído. Passou por mim vagarosa, um pouco cambaleante, e tamborilou a minha mesa como se agradecesse pela “conversa”. Se eu fosse fluente em linguagem corporal diria que, apesar de tudo, ela estava confortável na própria pele. Eu a observei sair da cafeteria, seu sobretudo se arrastou no degrau quando ela atingiu a rua e de lá veio uma inesperada lufada de ar quente que invadiu todo o ambiente como uma corrente elétrica. A saída de minha interlocutora telúrica aumentou a sensação térmica do lugar obrigando-me a desvestir meu cachecol. Voltei, finalmente, para Neruda. Me arrumei na cadeira, saquei o marca-página do miolo e retomei de onde havia parado. Algo não parecia certo. Me voltei novamente à mesa da ruiva, agora vazia. A marca de batom na xícara, o cigarro amassado no pires, nenhum grão de açúcar deixado à esmo. Neruda naufragava na concorrência com a personagem ausente. Busquei a porta, na esperança que a ruiva voltasse em busca de algo que pudesse ter esquecido.
Nada. Chamei o garçom e me fui pelas ruas, tentando, em segredo, refazer seus passos, entender seus mecanismos, desvendar suas frases. Um tempo após chegar em casa, ainda alvoroçada, atinei à falta em minha bolsa. Neruda.
Ticiana Werneck nasceu no Rio de Janeiro em 1976, hoje mora em São Paulo. Aos onze anos, brincando com uma máquina de escrever, criou um jornalzinho de histórias inventadas. Nunca mais largou os teclados. Jornalista, escreve para revistas e portais de negócios, e continua cedendo ao impulso de fatiar a vida em histórias.
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